segunda-feira, 3 de abril de 2017

UMA HISTÓRIA DE AMOR REAL E SUPERTRISTE - de Gary Shteyngart


Estamos vivendo tempos estranhos. Dias de verdades alternativas e ignorância histórica, onde a promessa da construção de muros que dividirão os escolhidos dos condenados é aplaudida de pé por grande parte da população, onde quem se impõem através de uma propaganda violenta é chamado de "mito" e o diferente se tornou errado e inimigo, e, isso tudo acontece enquanto as pessoas estão absortas em seus celulares e compartilhando suas vidas através de redes sociais, ignorando o rumo do mundo e os perigos do que podem estar por vir. Estamos a um passo de uma distopia e em dias como estes, obras que conversem com o momento da sociedade e nos apresentem uma ideia de onde o próximo passo pode nos levar são de extrema importância.

Foi buscando uma obra que espelhasse o que vivemos, que me deparei com um livro muito pouco comentado, mas que me ganhou desde suas primeiras linhas, me apresentando um universo distópico tão real e assustador quanto fantástico. Estou falando de "Uma história de amor real e supertriste" de Gary Shteyngart, publicada no Brasil pela editora Rocco, que além de reafirmar minha paixão por distopias, me passou a ideia de que o futuro de uma sociedade consumista e vaidosa, pode ser ainda mais amargo e vazio do que imaginamos.


Capa da Edição da Rocco
"Uma história de amor real e supertriste" se passa em um futuro próximo, onde os EUA estão vivendo os piores de seus dias, vítimas de uma crise econômica e política que foi intensificada com um fracasso militar na Venezuela, o que colocou o país em um cenário de caos, postes de crédito ornamentam as ruas, registrando os dados dos "Apparats" (equipamentos que todos possuem e que servem para mandar mensagens, como identificação e acesso a dados pessoais) e em que pessoas de baixo patrimônio ficam a mercê do estado e veteranos de guerra não recebem suas pensões, sendo obrigados a ocupar o Central park na procura de abrigo, manifestações eclodem em toda parte e são contidas com violência pelo exército de segurança nacional, o braço armado do partido "bi-partidário", a última lembrança dos tempos de democracia, a economia é baseada na moeda chinesa, que comanda o FMI e as grande empresas são todas fatias de enormes conglomerados financeiros.
Nesse mundo, que parece mais crível do que distante, encontramos Lenny Abramov, um novaiorquino de 39 anos, filho único de imigrantes russos, possível último fã de literatura e escritor de um diário, que trabalha para uma multinacional na divisão de serviços Pós-humanos, oferecendo imortalidade a pessoas de alto nível social e financeiro. A procura de clientes ele á mandado para Itália, onde acaba conhecendo Eunice Park, uma vaidosa e orgulhosa jovem, descendente de Coreanos por quem se apaixona perdidamente. No entanto, com o fracasso em convencer os ricos europeus em participar dos projetos de seu empregador, Lenny se vê obrigado a retornar a Nova York e a realidade de seu país, mas sem esquecer Eunice, a convida para vir morar com ele, resta agora ao pertenço casal, tentar se entender e adaptar-se, não só ao mundo em sua volta que desmorona frente a violência e ignorância, mas um ao outro, tão diferentes pela origem, idade e pontos de vista.



Como disse acima, o livro me ganhou em suas primeiras páginas, sei que é suspeito vindo de uma pessoa que se confessa fã de ficção científica e distopias sempre que tem oportunidade, mas o fato é que "Uma história de amor real e supertriste" mexeu comigo por apresentar um cenário assustador, personagens profundos e com motivações bem claras e conseguir dar atenção tanto ao mundo catastrófico que serve de palco para a história, quanto nos passar a evolução desses mesmos personagens no decorrer da leitura, seguindo a cartilha da boa ficção científica que está além da apresentação de tecnologias ou especulação de um futuro, mas na apresentação do impacto que todas as mudanças que podem ocorrer no mundo, podem causar na vida das pessoas e isso, esse livro faz com qualidade.

Um fator que achei importante no livro, e que conecta ainda mais o leitor a história, é o fato desta ser escrita em primeira pessoa, apresentando os pontos de vista do casal em capítulos que se alternam entre o diário de Lenny, que escreve para desabafar e se planejar, e, as mensagens de Eunice no "Globalteens" a rede social da época, que teima em dar dicas sobre como agradar os garotos e frisar que fotos e vídeos são mais interessantes do que textos. Esse clima íntimo nos coloca como cúmplices de seus pecados e frustrações, revelando também o choque de gerações que existe entre ambos, ele mais velho quase quinze anos, barrigudo e ficando careca, totalmente fora dos padrões de beleza e estilo vigentes em uma sociedade toda voltada para os jovens e seus hábitos fitness, e ela, o retrato de sua geração, extremamente magra, irônica e consumista, não desgrudando de seu "Apparat", por onde faz compras, conversa com amigos e família, faz "Streams" e ranquei as pessoas que a cercam por seus níveis de beleza, sensualidade e "fodabilidade", mas ambos demonstrando, através de seus depoimentos, o peso de se viver em uma sociedade vazia de valores e voltada para a aparência.

Essa mesma sociedade, que serve como pano de fundo da história de amor de Lenny e Eunice, é a parte mais fantástica do livro. O vazio e amargo futuro imaginado por Shteyngart, consegue ser original, extremamente real e ao mesmo tempo homenagear os clássicos sem os imitar, nos entregando uma sociedade que é um amalgama das duas distopias mais famosas de todos os tempos, "1984" e "Admirável mundo novo", com o tempero ácido dos dias de hoje, onde temos tanques nas ruas, violência do estado, pessoas vistas como descartáveis, ao mesmo tempo em que a sociedade é alienadas em seu mundo de prazer virtual, ignorando a cultura mais crítica e em especial a literatura (chegando a dizer que livros fedem e que é preferível que não se tenha contato) e o sexo é algo tão banalizado que a protagonista chega a fazer menção a uma amiga sobre uma atriz pornô que elas assistiam quando estavam no jardim de infância!! Uma mistura pontual entre repressão violenta e descaso total presentes separadamente nos dois clássicos, fatos que são somados à dependência pelas mídias sociais e tecnologias, tão presente em nosso cotidiano e que no livro é personifica no onipresente Apparat, o elemento que desempenha um papel de destaque por pautar o estilo de vida das pessoas e as ranqueando dentro da sociedade.

Gary Shteyngart
Esse "Aparat", que representa a evolução da forma atual de nossa própria sociedade interagir, parece demonstrar a qualidade e impacto da história contada pelo autor dentro da própria cultura pop, ao lembrar bastante o modo de utilização do aparelho visto no primeiro episódio da terceira temporada da aclamada série "BlackMirror", onde temos uma sociedade tão vaidosa e vazia como a presente no livro de Gary Shteyngar, que embora não sofra dos mesmos problemas sociais (pelo menos, não dentro do arco que o episódio mostra) também é toda baseada na ideia que o próximo tem de cada um e no ranking de seus cidadãos para o crescimento social.

Somado ao onipresente Apparat, Shteyngart ainda imagina uma divisão empresarial que entrega aos poucos cidadãos de alto nível financeiro a possibilidade de viver para sempre, através da utilização de nano robôs, dentre outras coisas, que manipulam a saúde dos clientes da "Wapachung", empresa de Joshie Goldmann, patrão de Lenny e que por principio age de encontro a toda situação em que se encontra a grande maioria da população, que luta para sobreviver, em um mundo onde a escassez é a lei e quem não possui dinheiro tem de se esconder dos postes de crédito para não correr o risco de ser deportado ou mesmo morto, frisando assim o egocentrismo e falta de empatia presente naquele mundo.


Os motivos para se ler "Uma história de amor real e supertriste " são muitos; sua narrativa cúmplice, seu universo deprimente e extremamente real e seus personagens bem explorados, tudo parece colaborar para que a obra de Gary Shteyngar seja muito mais do só mais um livro na estante, mas como eu disse no inicio, o que me fez encontrar esse livro é o fato de que ele reflete com intensidade o momento atual de nosso mundo e isso o torna extremamente relevante para todos, que assim como eu, enxergam nuvens negras se aproximando no horizonte.




Nenhum comentário:

Postar um comentário