quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

"DEIXA ELA ENTRAR" - muito do livro e um pouquinho dos filmes

    Em 2008 o cinema sueco trazia ao mundo uma grande surpresa ao reviver com dignidade a imagem do vampiro; se tratava de “Deixa ela entrar” do diretor Tomas Alfredson. O filme, que conquistou o cenário mundial no ano seguinte, rapidamente se tornou um clássico, recebendo uma refilmagem americana em 2010 com a Eterna Hit-gril, Chloë Grace Moretz , no papel da vampira ELI e dirigido por Matt Reeves que viria a dirigir o elogiadíssimo “Plane dos macacos: o confronto” em 2014. Eu, quando assisti ao filme o achei ótimo, mas na minha infinita ignorância sempre achei que ele era fruto de um roteiro original, no melhor estilo cinema autoral europeu, mas ao pesquisar um pouco mais sobre a obra após ouvir o excelente Cinecast Cult ( do site os cinéfilos) sobre o original sueco, acabei por descobrir que o roteiro é adaptado do livro homônimo do escritor John Ajvide Lindqvist e que a Globo livros o havia lançado no Brasil em 2012; Então eu não resisti, comprei o livro e o devorei.
   A história central do livro não tem nada de diferente dos filmes, ela se foca em Oskar e Eli; Oskar é um menino solitário dos subúrbios de Estocomo , que vive com a mãe, que é separada do pai alcoólatra , e divide seu tempo entre casa, onde está sempre só e a escola onde sofre bullyng dos colegas; Eli por sua vez é uma menina misteriosa que se muda, junto com seu “pai” para o apartamento vizinho ao de Oskar e acaba firmando uma amizade com ele, o fazendo refletir sobre autoestima, amor, solidão, sexualidade, medo e violência; enquanto essa amizade vai crescendo, estranhos assassinatos vão sendo realizados nas proximidade de Blackeberg, bairro onde os protagonistas moram, criando tensão e medo entre os habitantes, é entre esse acontecimentos que Oskar descobre que Eli é uma vampira, o que muda para sempre sua vida e sua forma de ver o mundo e a si mesmo. A trama central já é bem rica pelos temas que aborda e pela maneira como expõem esses assuntos , de forma que utilizaram apenas esse arco para roteirizar os filmes; no entanto, algo que não existe nos filmes é o aprofundamento das outras pessoas afetadas pela situação e as ações e reações que os protagonistas precisam tomar para sobreviver naquela sociedade, o que ao meu ver é muito bem conduzido pelo escritor, pois o livro tem diversos personagens que foram diminuidos ou excluídos nos filmes e que são importantíssimos para que possamos entender o mundo onde Oskar vive e aceitar suas decisões.

   Já no inicio do livro, Quase que junto com os personagens centrais somos apresentados a Hakan, que Oskar imagina ser o pai de sua nova amiga, mas que na verdade é seu ajudante; um pedófilo apaixonado por Eli e que é responsável de conseguir sangue para a sua amada de modo que esta não precise se expor. Nos filmes, a relação deles é distante e muitas vezes Eli o despreza como se ele já não fosse mais útil, já no livro há uma grande cumplicidade entre os dois, de modo que a Vampira não se zanga quando seu ajudante diz que não quer mais matar e vai a busca de sangue ela mesma, recomendando que Hakan descanse e esqueça um pouco a vida que eles levam; A história de Hakan vai sendo exposta lentamente, partindo de um momento atual onde ele caça e executa vítimas para retirar o sangue e, sua vida anterior, onde vemos seus atos de pedófilo; também somos apresentados a suas frustrações e arrependimentos e surpreendidos com momentos onde ele tenta realizar gestos genuínos de bondade, mesmo quando sua consciência grita que não há redenção. Diferente dos filmes o “fim” de Hakan ainda abre espaço para mais situações assustadoras e converge com o final de outros personagens em momentos aterrorizantes que ficariam muito legais no cinema.
   Há também o grupo do Bar Chinês, que não aparece por completo nos filmes; esse grupo é composto por Joke, Gösta, Larry, Morgan, Lake e Virginia ( no filme o grupo se resume aos amantes Lake e Virginia), esse grupo é a representação da solidão humana e de um underground que eu não sabia que existia na suécia; Morgam faz bicos para viver e está sempre de porre, Joke trabalha em um ferro velho as vezes, Gösta  vive em um fétido apartamento com vinte e oito gatos, Larry é aposentado por doença (qual ninguém sabe), Lake vive do dinheiro da venda da casa da família e dos selos raros que herdou do pai e Virginia é uma solitária cinquentona que bebe para esquecer as frustrações de sua vida e emprego medíocres, todos eles são descritos sempre usando roupas gastas e surradas quando não sujas, cambaleando pela noite, com o olhar vazio e o rosto e o corpo marcados pela bebida; deles, apenas Virginia tem uma filha e um neto, os demais só possuem uns aos outros, mas mesmo assim, não se pode dizer que eles são companheiros, na verdade é um grupo de várias solidões juntas. Esse grupo é responsabilizado por nos mostrar duas questões ( além de exporem uma sociedade Sueca desconhecida), as consequências que um crime, como o assassinato, causam no circulo social da vítima e as questões que se apresentam quando alguém é contaminado por um vampiro. O primeiro caso surge quando Joke, um dos bêbedos do grupo, é vítima de Eli, que sai para caçar após a resposta negativa de seu ajudante; o desaparecimento de Joke causa um forte impacto no grupo a que ele pertencia, especialmente em seu melhor amigo, Lake, que se desespera e se torna obcecado em descobrir o que aconteceu ao amigo; motivo que o leva a descontar, dias mais tarde, suas frustrações e raiva em Virgínia, sua amante, que acaba sendo atacada por Eli quando a fome a havia dominado. A partir daí acompanhamos todas as etapas da transformação de Virgínia, sua alergia a luz solar, sua fome e a descoberta pelo prazer de beber sangue (que é muito bem ilustrado pelo escritor), uma pseudo explicação científica que informa o porque o coração é o ponto franco dos vampiros, passando por delírios onde a infectada se imagina sugando o sangue de seu próprio neto. Devo dizer que os capítulos onde , após ser atacada pelos gatos de Gösta (que ela visitou para matar, mas que foi frustrada pela presença de Lake no lugar), onde Lake está com ela no hospital e lhe conta o sonho que tinha de morar no interior com ela e comprar uma casa para sua filha, tirando lágrimas dos olhos da vampirizada ,são muito bonitos e emocionantes, embora o final seja tão aterrador quanto o filme, quando a manhã chega e a enfermeira abre as janela para o sol entrar.
o sol anda forte não?!
   Também temos Tommy, sua mãe Yvonne e seu futuro padrasto , o policial Staffan. Tommy é um garoto mais velho que mora em um apartamento vizinho ao de Oskar, ele é uma das poucas pessoas que parecem respeitar o menino, dando-lhe conselhos e conversando sobre o dia a dia, ele passa grande parte do tempo no porão do prédio com seus amigos, cheirando cola e pratica pequenos furtos para conseguir dinheiro; Yvonne é uma viuva perdida que só é relatada fumando, sem saber como tratar com o filho ou observando seu namorado com olhos alegres; Staffan por sua vez é um dos policiais responsáveis por investigar os assassinatos que vem acontecendo na região de Blackeberg, campeão de tiro e cristão devoto, é através de seus relatos que somos apresentados a como a sociedade lida com a presença de um assassino em série em seu meio. Os motivos da rebeldia de Tommy e a consequência disso na relação de sua mãe com staffan são lentamente desenvolvidas e divertidamente trabalhadas. Esses personagens foram cortados dos filmes, talvez para dar um ar ainda mais solitário ao protagonista, mas que no livro são importantes pois são uma especie de espelho da vida que Oskar poderia ter também, deixando claro que ele não teria quase nenhuma esperança caso essa fosse sua situação.
   Um outro arco, que embora pequeno é muito bom e eu não esperava, é o de Johnny, o garoto que faz Bulling em Oskar. O autor o apresenta como o segundo filho de uma família de seis irmão, sendo apenas ele e Jimmy, seu irmão mais velho, filhos do mesmo pai. O capitulo único onde o foco é Johnny, apresenta uma conversa entre ele e o irmão mais velho onde o assunto é o pai que trabalha em uma plataforma de petróleo na Noruega, em poucas linhas , embora não justifique o modo como o personagem age, acabamos por entende-lo e o aceitar, a forma como o autor o humaniza, relatando a casa bagunçada, a mãe alcoólatra e sempre grávida, a falta de esperança e base, faz com que tenhamos mais pena do que raiva e nos coloca um nó na garganta quando o fim desses personagens é anunciado, ao mesmo tempo em que lá no fundo dizemos “Bem feito!”. É brilhante!
Dois outros personagens se impõem na trama, o clima do inverno Sueco e a solidão de seus personagens. No livro o clima tem um papel importante, a ideia do branco do gelo que representa a pureza e ao mesmo tempo a frieza; O clima também tem destaque nas partes tensas como quando um assassinato vai acontecer, o autor frisa o derretimento do gelo e a lama negra que corre pelas ruas, fazendo com que carros derrapem e armadilhas para os desavisados se formem. A solidão, como já falei, está em todos lugares do livro, no protagonista que sem amigos, se sente só mesmo que acompanhado da mãe, da Vampira que caminha entre as pessoas durantes séculos sem conhecer o que é a amizade verdadeira, Johnny que usa o bulling como armadura e que sente a falta de um pai e que vê no estilo de vida do irmão o único elo com algo que ele reconhece como verdadeiro, Hakan que ciente de seus defeitos vaga sozinho e triste reconhecendo seus crimes, o grupo do Bar chinês e suas desesperanças, as mulheres, sempre retratadas como submissas às vidas que lhe foram impostas, todos personagens estão sozinhos por mais que estejam acompanhados, analisando bem o livro, penso que a história é muito mais sobre a solidão do que uma simples história de vampiro.
Sempre fico feliz quando gosto de um filme e descubro que o livro onde foi baseado é ainda melhor que ele e “Deixa ela entrar” é um exemplo disso. O filme é muito bom, mas o livro o supera quando apresenta os personagens periféricos citados e as consequências da situação em suas vidas, além de levantar diversas outras questões, como a Origem de Eli, que é ignorada nos filmes e que nos é mostrada através de um sensacional elo psíquico que se forma entre ela e Oskar quando eles se beijam, Oskar é colocado dentro da mente de Eli e vê, como se fosse ela, seu passado e como aconteceu sua contaminação, de forma que descobrimos que Eli na verdade é Elias!isso mesmo, um menino!! Elias foi emasculado e contaminado para saciar a sede de sanguem do senhor feudal onde sua família era serva, isso a mais de duzentos e vinte anos.... o que responde a uma pergunta que a (ou o) vampira(o) faz a Oskar quando a amizade de ambos começa a crescer : “se eu não fosse uma menina, você gostaria de mim?”... e a resposta de Oskar se confirma apesar das dúvidas que a revelação perturbadora levantam em sua cabeça de menino de doze anos..., “Sim!”, o que também é claramente sentido por Eli , algo que nos filmes parece ser um sentimento simulado na busca de um novo ajudante.
   Outra questão é o Bulling, nos filmes a situação vivida por Oskar pode ser caracterizada como terro psicológico, mas no livro o medo é devido a uma verdadeira possibilidade de dor física acompanhada pela certeza de humilhação constante, Oskar é perseguido a todo momento, o obrigam a imitar um porco, o surram, sujam e prejudicam de toda maneira, conseguimos sentir através das linhas a falta de força e esperança que o personagem apresenta frente a tudo e acompanhamos a alegria quando ele consegue reagir e começa a se tornar alguém diferente, o final do livro me arrancou um sorriso quando fala o que acontece com os covardes irmãos Johnny e Jimmy na piscina de treinamento da escola.

  Por tuuuuuuuuuuudo isso, considerei “Deixe ela entrar” um dos melhores livros que li nos últimos anos e o melhor romance sueco que eu já li na vida (só li ele), um livro de fantasia que não ofende a inteligência de ninguém mas que ao mesmo tempo consegue ser divertido e empolgante, consegue explorar bem seus personagens expondo suas motivações, sentimentos e vida; mostra uma lado diferente do comumente apresentado da Suécia, traz novamente a dignidade que foi roubada dos vampiros ultimamente, apresentando aquele quê de violência e revanche que deixa um gostinho de sangue na boca, sem trocadilho.
  
capa do filme original 2008

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