quinta-feira, 14 de junho de 2018

AS BOAS MANEIRAS (2018)




Em junho de 2016, Após assistir o ótimo filme argentino "Relatos selvagens", eu questionava o porquê o Brasil não produzia cinema no mesmo nível de nossos vizinhos Hermanos, que conseguem entregar bons filmes com temas variados, sem se prender aos problemas existenciais de sua classe média ou a violência que a pobreza enfrenta; a opção que encontrei na época passava pelas produções autorais e de menor orçamento, como por exemplo, os curtas de terror de Dennison Ramalho, mas o pouco alcance desse tipo de produção veio depois a me parecer um caminho estreito demais para fomentar investimento e qualidade em nossa indústria cinematográfica, que necessitava de algo maior para se tornar visível.

Dois anos depois, a semente desse cinema de nicho que eu havia enxergado como opção parece ter começado a germinar com a estreia de um filme que foge do que é comumente feito no Brasil ao misturar elementos de terror sobrenatural e crítica social, além de inovar em sua narrativa e plasticidade. Trata-se de "As boas maneiras", filme  de Juliana Rojas e Marco Dutra, estrelado por Marjorie Estiano, Izabel Zuaa e Miguel Lobo, que estreou dia sete de Junho,  podendo ser aquele algo a mais que trará um novo frescor a industria cinematográfica BR.


  

O filme, que se divide em duas partes, acompanha a história de Clara (Izabel Zuaa) uma melancólica enfermeira, que é contratada para "ajudar" na casa e ser a babá do filho ainda não nascido de Ana (Marjorie Estiano) e que , conforme a relação das duas vai se estreitando, começa a notar o estranho comportamento de sua empregadora em noites de lua cheia e procurar por respostas. Já na segunda parte, encontramos Clara, quase dez anos depois, muito mais confiante e morando na periferia com seu filho adotivo Joel ( Miguel Lobo) que guarda um segredo que o impossibilita de aproveitar ao máximo sua vida e que põe tudo em risco quando descobre o que Clara escondia de seu passado e parte para a cidade em noite de lua cheia.

Embora na minha sinopse a trama pareça dar toda atenção a uma história clássica de lobisomem, o filme na verdade segue a cartilha de toda boa história de ficção científica ou fantasia e usa esse elemento fantástico muito mais como plano de fundo para expor de forma sutil os problemas de nossa sociedade, do que aborda a lenda e maldição da licantropia. Sendo assim, "As boas maneiras" é mais um drama que fala de amor, sacrifício e tolerância, do que um filme de monstro pensado para dar sustos.

Clara e Ana
Podemos constatar o comentado acima apenas analisando o próprio nome do filme, que faz alusão a uma conversa que Ana tem com Clara, quando esta lhe serve sopa no jantar e que a remete a aulas de etiqueta que ela fez quando era mais nova. Ana conta que era ensinada a tomar sopa sem fazer barulho e andar com um livro na cabeça para treinar a postura (coisa que ela não consegue quando tenta demonstrar, indicando sua falta de aptidão para fugir de quem realmente é ) essa conversa, que pode passar despercebida, descreve toda a dura relação dos personagens centrais com a sociedade que as rodeia e a qual tentam se adaptar e manter com o máximo esforço a convenções, seja a mulher negra, pobre e lésbica, que tem que se sujeitar a acumular tarefas em um emprego para poder pagar suas contas, seja a mulher rica, que seguindo seus desejos é renegada pela família e expulsa de sua casa por desonrar seu nome ou a criança que, sem conseguir escapar de como nasceu, é trancada em um quarto blindado em noites de lua cheia. Todos ali são párias, por não conseguir fingir por completo suas naturezas, por não seguir as boas maneiras.

Podemos até mesmo traçar um paralelo entre o aparentemente frágil Joel com a história de muitas crianças e jovens das periferias. Criado na pobreza se sente abandonado e se vê impossibilitado de participar das experiências que a vida lhe mostra devido à condição em que nasceu. Como no caso de muitos desses jovens a revolta também é o escape de Joel na busca por liberdade e o erro fruto da falta de conhecimento sobre si mesmo, o que, aos olhos da sociedade, o apaga como pessoa e o enxerga apenas como um monstro.

Eu era um lobisomem juvenil
Mas longe dessas interpretações subjetivas, o filme me surpreendeu, além de pela história com pitadas de terror e o aprofundamento dos personagens; pela sua estética e inovação na narrativa. A forma como o filme mostra São Paulo dividida entre uma zona de arranha-céus espelhados e uma periferia imensa e a transformação de menino para monstro quando ele atravessa a ponte; as ruas escuras cheias de luminosos dão um ar de cinema coreano à película e os efeitos especiais bem bacanas para nosso pobre cinema além de não decepcionar prestam homenagem ao clássico “Um lobisomem americano em Londres”, sem contar que no primeiro ato, temos a história de Ana sendo contada através de desenhos e no ato final ainda vemos um trecho musical, nada descambando para cafonice ou galhofa.

No entanto, como tudo na vida esse filme também tem seus problemas, e, um dos que mais me incomodou foi a extensão da história. A produção tem duas horas e dez, o que não é lá um grande tamanho, no entanto, se tratando de uma história que foca em apenas três personagens, parece que há uma barriga desnecessária na trama. Há também algumas falhas de roteiro que não me passaram como o fato de ninguém vir atrás do menino Joel, quando este é levado por Clara ou como ela construiu um quarto blindado no fundo da peça onde morava. Mas todos esses pequenos problemas não apagam o mérito e o marco que o filme é por fugir da mesmice.

Apesar de seus pequenos problemas, “As boas maneiras” estreia trazendo novos ares para o cinema brasileiro e abrindo portas para temas mais diversos e fantásticos produzidos em nossas terras tupiniquins, injetando qualidade e quem sabe fazendo com que surjam investimentos suficientes para que nossa indústria se torne rentável e assim independente do estado e, finalmente, deixar de ser esse monstro assustador que só aborda as misérias da pobreza ou cinebiografias e conseguir alcançar o mesmo nível  e qualidade do cinema Argentino.




Nenhum comentário:

Postar um comentário