Se
o século vinte e um trouxe uma certeza para o mundo, é que a Coréia
do Sul sabe fazer cinema. Com filmes que se tornaram clássicos, como
a trilogia da vingança de Park Chan-Wook, e produções que
reinventaram os estilos a que pertenciam, como “O hospedeiro”,
“Sede de Sangue” e “Eu vi o Demônio”, o cinema Sul Coréia
conquistou o público e a crítica, tornando-se ele, inspiração
para produções ocidentais. No entanto, depois do massacre no
colégio técnico de Virgínia, nos EUA, efetuado pelo estudante sul
Coreano Cho Seung Hui, onde foram divulgadas fotos onde o mesmo fazia
poses
com
um martelo, fato que foi identificado como referência ao filme “Old
Boy”, filmes daquele país acabaram perdendo espaço e por muito
tempo o acesso aos mesmos se tornou mais difícil.
Porém,
mesmo com as dificuldades, o cinema Coreano seguiu se aprimorando e
agregando seu ponto de vista a estilos e conceitos já conhecidos, e
até batidos aqui por estas bandas, tornando algumas de suas
produções impossíveis de ser desprezadas. Um ótimo exemplo, é o
filme que estreou quase na véspera do Natal de 2016 aqui no Brasil e
que chamou minha atenção pela forma que conta uma história que
está muito saturada em nossa cultura, trata-se de “Trem Para
Busan”, ou como foi nomeado em nosso país, “Invasão Zumbi”,
do diretor Yeon Sang-Ho, que de forma simples, divertida e
emocionante me deu nova energia para encarar mais uma produção com
um tema já tão explorado e me manteve preso na cadeira, em suas
quase duas horas, com uma mistura de emoções que nenhum outro filme
do estilo me causou na vida.
Sinopse:
Seok-woo,
um gestor financeiro, resolve atender o pedido de aniversário de sua
filha e levá-la
para a cidade de Busan para ver sua mãe; no mesmo trem, o time de
Baseball estudantil onde joga Young-Guk parte para um jogo do
campeonato; o truculento Sang-Hwa vai com sua esposa Sung-Kyung para
casa de parentes e Young-suk vai voltar para casa. Tudo parece
normal, mas o que todos ignoram na viagem de trem até Busan, é que
na noite anterior, um acidente na usina de Ansan contaminou um grande
número de pessoas, tornando-as violentas e irracionais, e, que
entrando escondido no trem, existe um passageiro infectado, o
que desencadeará
uma onda de violência e luta pela sobrevivência dos passageiros;
resta agora saber se eles chegarão seguros em sua última parada ao
enfrentar um vírus que se espalha mais rápido do que um trem-bala.
Mas,
o que esse filme tem?
Lendo
a sinopse de “Trem para Busan”, ele parece mais um filme de
zumbis iguais a muitos que vemos hoje em dia, onde
suas referências são bem claras, como o fato de os protagonistas
estarem isolados em um local fechado, tal qual “a Noite dos
mortos-vivos”
ou “Madrugada dos Mortos”, e, também a ideia de apocalipse
zumbi, que se tornou famosa com a série “the walking dead”. No
entanto, o filme traz em si questionamento e pontos
de vista
que, tanto se opõem à visão de sociedade dessas produções, como
aprofunda ideias e situações atuais de nosso mundo usando a trama
do filme como alegoria.
Dentre
os argumentos que se opõem a outras produções do gênero, em
especial a “the Walking Dead”, está a ideia de que a gentileza e
o sacrifício é o que salvariam a humanidade em uma situação como
a apresentada no filme. Enquanto na série criada por Robert Kirkman,
a sociedade se tornou egoísta e violenta, se defendendo em pequenos
bandos, na sociedade que se forma em “Trem para Busan” a
sobrevivência depende de todos e é importante buscar salvar a
todos, mesmo os que não tenham uma utilidade prática ou que sejam
desconhecidos, e isso é exposto pouco a pouco e vai sendo ensinado
ao protagonista (Seok-woo), por quem ELE deveria ensinar, que é sua
filha, culminando em uma cena final, onde a capacidade de se
emocionar, que é o que define o humano, é o que assegura o destino
dos sobreviventes, cena
que também
acaba se opondo a tomada final do clássico “Anoite dos
mortos-vivos”
Mesmo
ignorando toda
diferença de tempo das situações apresentadas na série da AMC e
do filme Sul
Coreano, onde, no
filme, o vírus se espalhou
por menos de um dia e
na série a infecção já devastou o planeta por anos, o
que fez as
pessoas se obrigaram a tornarem-se mais duras, acredito que esse
diferencial ético seja válido e
engrandeça
a produção oriental por
nortear
sua história
com uma visão mais nobre sem
ser nada piegas.
Ainda
falando sobre ética, o filme traz reflexões em seu desenrolar, que
remetem ao momento atual vivido por nossa sociedade. Um deles se dá,
quando após uma parada frustrada, os sobreviventes se encontram
divididos em vagões distantes, sendo necessário que alguns deles
atravessem vagões cheios de mortos-vivos para encontrar seus amigos
e parentes. Chegando lá, após muito sacrifício, grande parte das
pessoas que estava seguras resolve expulsá-los por medo de que algum
estivesse contaminado por virem
de
uma área mais perigosa. Essa sequência me remeteu muito a crise dos
refugiados que estamos vivendo nos dias atuais, onde vemos milhares
de pessoas buscando salvação ao sair de suas casas em zonas de
guerra e que, muitas vezes, são alvo de desconfiança e medo de quem
os vê chegando em seu país, aparentemente tão seguro; resposta
que o roteiro dá, ao deixar claro que as vezes o perigo está
exatamente onde nos achamos seguros.
Agora o bicho vai pegar |
Mas
além de levantar questionamentos e fazer menção ao momento atual
em nossa sociedade, o filme é extremamente divertido e tenso. Quanto
a tensão, ela surge desde o prólogo que temos antes da apresentação
do título da produção, onde vemos um caminhão atropelando um
cervo e o mesmo levantando “Zumbificado”, em uma cena que me
lembrou bastante o início do também Sul Coreano “O Hospedeiro”,
e, a tensão só cresce com o decorrer da história, nos passando
aquela sensação de que vai dar tudo errado, quando vemos o
passageiro infectado com uma mordida na perna e rezando no
banheiro para
que não
se transforme.
Já
falando de diversão, o segundo ato do filme é fantástico, onde
temos, praticamente, um jogo de plataforma, com três personagens,
batendo nos zumbis para conseguirem atravessar quatro vagões e
alcançar seus entes queridos, destaque para o truculento Sang-Hwa,
que sai no braço com os mortos-vivos.
Para
encerrar, o filme ainda tem uma mensagem de esperança ao final, que
é precedida por uma das cenas mais bonitas que já assisti em um
filme de terror ou thriller de ação e que vai se desenhando desde a
primeira conversa entre Seok-woo
e
sua filha Soo-An, passa pelos diálogos entre os sobreviventes,
quando estes precisam lutar contra os zumbis, e termina com a própria
Soo-An, cantando a música que cantou em uma apresentação da escola
onde o pai não foi por causa do trabalho, encerrando o filme com um
trio de sobreviventes inusitados e símbolos máximos de esperança,
me deixando com um nó na garganta.
Pois
bem, nada que eu vá dizer poderá substituir a experiência de
assistir esse que foi uma das grandes surpresas
boas que 2016 me deu, então se tiver um tempinho, assista “Trem
para Busan”, ou como ficou por aqui, “Invasão Zumbi” e se
emocione e aterrorize-se nessa viagem de duas horas na busca por um
lugar seguro em um trem cheio de emoções, referências e
questionamentos que vão te fazer pensar sobre a vida e nosso mundo.
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