Certa vez, li em algum lugar
que a leitura de romances é um exercício de empatia, pois faz o
leitor se colocar no lugar dos personagens, encarando, como se fossem
seus, os problemas e situações apresentados na trama e, em
consequência disso, quem lê mais, tem menos medo do próximo,
porque adquire maior facilidade em vê-lo como um igual. Guardei
esse argumento para mim e sempre que, em uma roda de amigos, eu
citava um livro e alguém perguntava o porquê de eu ler tanto, dizia
sem pestanejar: "É um exercício de empatia!". No entanto,
não lembro de nenhuma vez em que tenha sido questionado por citar um
filme, talvez porque o cinema tenha se transformado em diversão pura
e simples, como se tivéssemos nos tornado mal acostumados pelas
grandes franquias, blockbusters milionários e universos expandidos a
não enxergar que o cinema, assim como a literatura, também é uma
forma de nos colocar no lugar do outro, nos colocando como
passageiros de suas experiências e, nos enriquecendo como pessoas.
Por sorte, de tempos em
tempos, surge uma produção que nos lembra o verdadeiro poder do
cinema, como é o caso de "Get out", ou como foi traduzido
no Brasil: "Corra!", trhiller escrito e dirigido por Jordan
Peele e estrelado por Daniel Kaluuya e Allison Willians, que
estreou no Brasil em Maio, mas que só agora tive o prazer de
assistir e que me deixou boquiaberto tanto com a história que
conta, como com o que o filme conseguiu revelar sobre mim mesmo.
"Corra!" conta a
história de Chris Washington, um fotógrafo (negro) que é convidado
por sua namorada Rose (que é branca) para passar o final de semana
em sua casa de campo e conhecer seus pais e irmão. Mesmo tenso pela
diferença étnica e social que existe entre ele a a família da
namorada, Chris aceita o convite e é extremamente bem recebido pelo
casal de progenitores da namorada, Dean e Missy. Mas as coisas
começam a ficar estranhas, quando ele se vê presente em uma
misteriosa reunião na casa, contendo um grande número de pessoas da
alta classe, todas extremamente interessadas em seu gosto por
esporte, visão de mundo e constituição física, e tudo só piora,
quando Chris percebe que as pessoas negras presentes no local (não
mais de três, dois empregados e um jovem convidado que se veste como
um senhor de idade) agem de maneira mecânica e artificial. Resta
agora a Chris, tentar entender o que está acontecendo naquele lugar
afastado e misterioso e, fazer o possível para dar o fora dali.
Brother! Que filmaço! Fazia
um tempinho que eu não assitia a um filme que me prendesse na
poltrona, com os dentes serrados de tensão e mergulhado no que está
acontecendo em tela, méritos do roteirista e diretor Jordan Peele,
que nos entrega uma história inteligente, que consegue ser pesada,
sem deixar de ser divertida e até humorada quando necessário;
resultado, não só do aparente background de cinéfilo, que o
diretor parece ter, ao trazer conceitos que lembram os clássicos de
Hitchcock, mas também seu histórico pessoal de escritor e ator de
comédia, fatos que podem ser confirmados ao assistirmos um pouco de
seu trabalho em seus antigos programas do canal "Comedy
central", que expõem toda sua agilidade e competência como
roteirista; no entanto, seu talento como diretor, exceto no filme
"Keanu", uma comédia nonsense onde ele atua e co-dirige
algumas cenas, sem fugir de seu terreno mais conhecido, nunca havia
sido exposto como agora; uma grata surpresa em uma área cada vez
mais carente de cineastas autorais e competentes.
Somando-se ao talento do
diretor, outro fator que favorece o filme são as atuações,
principalmente do protagonista, que é interpretado por Daniel
Kaluuya e por seu par romântico a atriz Allison Willians. O ator
britânico, já havia chamado minha atenção por seu papel em Black
Mirror, principalmente por sua capacidade expressiva; o cara é craque
em transmitir sentimentos sem precisar utilizar uma única palavra e
em uma trama onde a suspense e a estranheza são ingredientes de
destaque, um ator que consegue transmitir no olhar a perturbação e
medo que sente, facilita o andamento da história de maneira visível.
Já Allison Willians, de quem eu nunca havia ouvido falar, me
surpreendeu pela naturalidade com que compõe seu personagem e pela
química que desenvolve com Daniel, assim como a quebra dessa química
no arco final da história, quando a personagem tem uma virada e a
própria forma de atuar da atriz parece seguir aquele novo modo de
agir, sendo que o momento final da história (que para mim é o ponto
alto) me parece ser tão completo por deixar apenas os dois
brilharem.
Apesar das ótimas atuações
e direção, o destaque é a história do filme. Para começar, a
trama contém toda força necessária que um filme de suspense que
aborda o racismo deve ter para o momento atual de um mundo cada vez
mais preconceituoso e extremista, principalmente no que toca os EUA.
Basta prestarmos o mínimo de atenção nos diálogos dos
personagens, ou nas frases soltas no jantar da família ou no
encontro na casa e vamos, aos poucos montando o cenário de
preconceito que parece cristalizado em toda parte, seja quando uma
convidada da casa de campo pergunta se os negros são melhores (na
cama), ou quando o irmão de Rose, pergunta por que Chris não se
interessa por MMA, pois com sua constituição física se tornaria
uma fera, ou mesmo quando outro convidado diz que o preto está na
moda; todas essas pequenas migalhas vão desenhando uma situação
onde o negro vais sendo descrito como uma coisa, ou um animal, que,
segunda a visão do não-negro (presente no filme) tem suas únicas
utilidades em suas possíveis vantagens físicas, mas como pessoa,
são totalmente dispensáveis, como no discurso dado pelo pai de
rose, quando conhece o protagonista e este lhe conta que na vinda,
haviam atropelado um cervo, ao que o futuro sogro diz que esses
animais estão por toda parte, poluindo e destruindo o ecossistema e
que quando sabe que alguém deu um fim neles fica feliz, pois é
menos um para incomodar, em uma brilhante alegoria feita pelo roteiro
em que o cervo (símbolo clássico de animal caçado) é comparado
aos negros e, o genial é que tanto o próprio cervo, quanto cada
palavra citada pelos personagens do filme não está lá por acaso,
nem mesmo a ideia de que que apenas as vantagens físicas dos negros
é a única coisa que importa.
Mas mesmo abordando e expondo essas situações e fatos que todo negro já presenciou (como diriam os racionais: Quem é preto como eu já tá ligado qual é...), o filme não tenta ser panfletário (não que ser panfletário seja errado), se tornando genial e tão especial justamente pela pitada de comédia (muito disso apresentado pelo ator Lil Rel Howery, que faz o papel do melhor amigo do protagonista e que tenta mostrar a ele a roubada onde está se metendo) que serve para exorcizar o peso dessas questões sociais abordadas de maneira periférica no filme sem as colocar em segundo plano, lembrando em muito o clássico "O grande Ditador" de Chaplin, que foi um dos primeiros filmes a utilizar o cinema e o humor para combater o extremismo e preconceito. Esse humor, herança da carreira do diretor de seus tempos de comediante de TV, se soma a sua experiência de vida, ele mesmo filho de um casal multiétnico e casado com uma mulher branca, que deve ter presenciado e vivido muitas cenas semelhantes a do jantar ou do encontro presentes no filme e comprovam a importância da representatividade no cinema, ao colocar escrevendo e dirigindo, alguém que realmente sente na pele um pouco do que a história tenta transmitir.
Jordan Peele |
Pois bem, mais do que um
filmaço de suspense, "Corra!" é uma obra obrigatória.
Bem escrito e dirigido por uma mente cheia de frescor e com muito a
agregar ao cinema, com grandes atuações e momentos de tensão e
ação dignas do respeito de fãs de Hitchcock e Tarantino e, acima
de tudo, possuidor de uma mensagem forte, embora sutil, sobre nós
mesmos e a sociedade onde vivemos. Traz a visão de um grupo que
quando não é totalmente estereotipado é muito pouco representada
no cinema e o coloca em seu devido lugar de Pessoas e, faz através
de alegorias e diálogos brilhantes, que olhemos para dentro de nós
mesmos e reconheçamos nossos próprios preconceitos e falta de
empatia, reafirmando com talento o verdadeiro sentido do cinema que,
tanto quanto divertir e maravilhar, é também de nos fazer viver
várias vidas e nos enriquecer como pessoas.
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