O
ano de 2017 vem sendo marcado por uma constatação fantástica:
Voltamos no tempo! É só olhar o noticiário ou correr os olhos
pelas timelines das rede sociais e as provas vão ser atiradas em
nossas caras; é caça aos comunistas, ultra nacionalismo ganhando
força, luta contra os direitos humanos, inflação, desemprego,
extremismo religioso, em fim, parece que retrocedemos, pelo menos,
trinta anos e vivemos agora em uma realidade focada na ignorância,
onde a maioria serve de massa de manobra para um pequeno grupo.
Talvez
eu esteja sendo pessimista com o ano, afinal ele apenas começou e
nem passamos do carnaval, mas eu, que sou fã de distopias, penso que
estamos as portas de uma e tenho plena convicção de que tudo que
anda acontecendo no mundo, daria uma boa base para o roteiro de um
filme de ficção científica. Só que tem um problema, esse filme já
foi feito e para se somar as estranhezas desse ano, foi filmado a
exatos trinta anos. Trata-se de "They Live" (ou, "Eles
vivem"), um dos clássicos dirigido pelo mestre do terror e
ficção científica oitentista John Carpenter e que revendo hoje, me
parece estar mais para um documentário do que para um filme.
Obedeça |
"They
live" conta a história de George Nada, um andarilho que
transita pelos Estados unidos a procura de uma vida melhor. Em uma
dessas viagens ele desembarca em uma grande cidade onde se emprega na
construção civil e consegue abrigo em uma comunidade apoiada por
uma igreja. Desconfiado dos movimentos noturnos dessa igreja, Nada,
resolve investigar e se depara com uma misteriosa reunião e com um
laboratório e, vendo diversas caixas fechadas, resolve furtar uma,
descobrindo depois que se tratavam de óculo escuros. Sem saber como
conseguir lucro com o que pegou na igreja, ele pega um óculos para
si, fato que mudará para sempre seu ponto de vista em relação ao
mundo.
Os
óculos fabricados na igreja, mostram ao protagonista uma verdade que
ele não tinha acesso a olhos nus, onde propagandas em outdoors e
matérias inteiras de revistas são substituídas por simples ordens
que mandam "reproduzir", "consumir" e "obedecer",
no dinheiro se vê a frase "esse é seu Deus" e até o
semáforo da rua emite a frase "durma" repetidamente para
quem anda por ali. Para finalizar, George ainda descobre que ao usar
os óculos, algumas pessoas se apresentam como figuras assustadoras,
com o rosto de uma caveira azul e olhos prateados, fatos que o levam
a perceber, depois que se envolve em muitas confusões, que a terra
foi invadida por uma raça de alienígenas, que se infiltrou e tomou
o poder para si, transformando os humanos em uma massa de manobra e
mão de obra hipnotizada e, que a única maneira de se livrar do
julgo dos invasores é se juntar a pequena resistência que ele
havia espionado na igreja. Mas como uma resistência, composta por
meia dúzia de pessoas desacreditadas, poderá enfrentar quem comanda
o planeta inteiro e nem mesmo é percebido?
Eu
sou muito suspeito para falar de qualquer filme de John carpenter, de
quem já me declarei fã inúmeras vezes. O cara deu a cara ao cinema
de terror moderno através de clássicos como "Halloween"
(1978), "O enigma de outro mundo" (1982), "À beira da
Loucura" (1994) entre outros, mas tenho de dizer que "Eles
vivem" se coloca para mim um degrau acima devido ao fato de seu
flerte com a ficção científica e a mensagem de questionamento que
o autor tenta passar ao espectador, assim como os conceitos e a
maneira visual tremendamente original que o diretor opta por utilizar
para transmitir as ideias do filme.
Consuma |
A
critica social que o filme traz em suas entrelinhas é apresentada no
exato momento que percebemos que
o
protagonista tem o sugestivo nome de "Nada", fato
o que vem a somar a trama, se relacionando tanto ao poder do mesmo
frente ao inimigo que enfrenta, quanto ao
sentimento dos trabalhadores americanos dentro do
contexto histórico que passava os Estados
Unidos
quando o filme foi produzido. Vale lembrar que nos meados dos anos
oitenta, os E.U.A
ainda
sofriam
com a crise do Petróleo e que sua industria automotiva vinha
perdendo espaço para a Japonesa, fatores que geraram desemprego e
desesperança , o que é demonstrado de forma semelhante em
outros filmes, como na comédia "Fábrica de loucuras"
(1986)
de
Ron Howard, onde uma montadora americana é fechada e um funcionário
vai até Tóquio buscar auxilio da industria japonesa,
mostrando a crise no cenário americano, ou
"Robocop" de 1988, onde o cineasta Paul Verhoeven utiliza
uma ideia pessimista para mostrar uma Detroit, outrora símbolo da
industrialização, como uma cidade pobre, violenta e perdida, tal
qual a cidade
onde nosso protagonista desembarca com o sonho de dias melhores, mas
que só lhe apresenta recusas, miséria e força bruta, como se ele
realmente, nada fosse.
Essa
desumanização, que no filme é apresentada de maneira muito sutil,
ao nomear o protagonista de Nada, faz um paralelo extremamente importante com a questão da distopia e o momento que vivemos hoje.
Da mesma forma que no filme, hoje existe a influência por não dar
rostos e vozes à grupos de pessoas que pensam diferente de nós e
nossas bolhas sociais, apagando seu individualismo e os relegando a
massa, como se todos que pensam diferentes de nós tivessem os mesmos
desejos e pontos de vista; meros números que não somam aos nossos
interesses, fato semelhante que ocorre em distopias, como "1984",
ou "Uma história de amor real e super triste" e que vemos quase diariamente na internet, quando manifestações por melhorias
ou buscando direitos, são rechaçadas com violência e comemoradas
por quem pensa de forma diferente.
Eu vim aqui pra mascar chicletes e chutar traseiros... |
Outra
coisa que é bacana e original para a época, é o fato dos vilões,
serem os típicos representantes do "sonho americano". Em
uma época onde a guerra fria ainda dava seus últimos suspiros,
colocar o bem sucedido cidadão americano como o responsável pela
degradação da sociedade, mesmo que afirmando que o grosso destes
eram alienígenas, era algo quase impensável no cinema, mas
é
exatamente
o que Carpenter faz, ao mostrar através das mensagens subliminares
que o protagonista descobre através de seus óculos, que o poder dos
extraterrestres vem do consumismo e da futilidade que se tornaram o
objetivo final da raça humana, algo que ia totalmente no sentido
oposto as mensagens passadas pela maioria dos filmes de ação da
época, que apresentavam inimigos comunistas que tinham por objetivo
destruir a sociedade perfeita americana, uma olhadinha em "Rocky
IV" exemplifica exatamente o que estou dizendo.
O
fato
de os extraterrestres serem as pessoas que dominam o planeta
financeiramente e por isso manipulam os seres humanos através dos
desejos e não da força, também fala muito sobre os dias atuais. Em
uma sociedade que vem se baseando na satisfação pelo consumo e
buscando uma felicidade que só tem valor quando é aplaudida pelos
outros, utilizar de força bruta é desperdício de energia, quando se
pode induzir as pessoas a desejar ter tudo que se diz que é bom.
Dessa forma, o filme apresenta um cartaz com uma bela Praia e, ao
colocar os óculos, o protagonista lê apenas consuma, e, aquela
viagem passa a ser o objetivo das pessoas que passam por ali, da
mesma forma que hoje, ao colocar-se propagandas na TV de celulares da
última geração, ou do "carro do ano" buscar conseguir
esses itens, será o objetivo de vida de quem se encontra distraído
em frente ao televisor, sem perceber que ele foi reduzido de pessoa,
para um simples consumidor angustiado e, muitas vezes, frustrado.
Esse é seu Deus |
Esse
desconforto com o que a vida vem se tornando e a crítica social que
John Carpenter faz ao mundo que estava surgindo, é o fato que mais
me fascina nesse filme. A ideia de que poucos são sustentados por
muitos e que estes, hipnotizados por televisores e a promessa de um
amanhã melhor, defendem uma minoria abastada como uma massa de
manobra sonolenta, que ignora a verdade que está na frente de todos,
mas que ninguém está olhando de verdade, pois estão entorpecidos
por sonhos e cores brilhantes, quando na verdade o mundo se apresenta
em distintos tons de preto e branco, onde se gritam palavras de ordem
que são obedecidas sem o mínimo questionamento.
Case e se reproduza |
No
entanto, o diretor não nega que muitos daqueles que são chamados de
povo, também possuem seu quinhão de culpa, até porque ninguém se
torna opressor, sem um pouco da ajuda dos próprios oprimidos. Assim
temos alguns personagens, que mesmo em posição de servidão, optam
por ajudar os invasores, na esperança de partilhar com eles do
poder e riqueza que estes ostentam; como o personagem que passa toda
primeira parte da trama assistindo TV e reclamando de dores de cabeça
quando a transmissão dos aliens é interrompida pelo sinal da
resistência, acabando por se mostrar um colaborador e, possivelmente, informante dos invasores no final do filme.
Personagens
como estes são recorrentes em distopias. Em "Matrix" temos
Cypher, que busca um acordo com as máquinas para ter a vantagem de
voltar para a matriz, em "1984" temos o vizinho de Smith,
que mesmo fora dos padrões do partido apoia tudo que este faz, se
sentindo orgulhos até em seus derradeiros momentos, quando seus
filhos o delatam; gente assim vem ganhando espaço casa vez maior em
nosso mundo, buscando vantagem e apoiando cegamente os interesses de
quem acreditam poder acompanhar no crescimento, não percebendo que
são reles números servido de escada para alguns privilegiados.
Por
toda sua crítica a uma sociedade que vem se tornando cada vez mais
consumista e menos racional, além da diversão que proporciona,
"They Live" é um filme obrigatório para quem é fã de
ficção científica, distopias ou apenas sente um desconforto com os
movimentos extremos que vem cada dia mais ganhando força. Um filme
que, além de divertir com um toque de teoria da conspiração,
ainda nos mostra que tudo nessa nossa sociedade é cíclico e
beneficia alguém, mesmo as crises e épocas difíceis. Uma obra prima
de John Carpenter em sua melhor forma que, fora os ET's, beira ao documentarismo. Então se você se sente desconfortável, oprimido,
hipnotizado, ou mesmo se tem uma esperança crescente em se dar bem
na vida com base nas propagandas de TV, ou mesmo quem não sente nada
e quer ver uma trama oitentista, que mistura luta livre, alienígenas
e teoria da conspiração, assista a esse filme e te garanto que será
como ver o mundo através de uma lente da verdade.
Trailer:
Surreal pensar que essa crítica foi escrita em 2017, e eu estou lendo em 2021...
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