Quando assisto a TV aberta, a
maioria dos programas e notícias me faz pensar que a humanidade regrediu para
um estado de bestialidade. As novelas, que mesmo piegas, procuravam abordar
temas relacionados a coisas positivas, trazendo alguma lição de moral, hoje,
ultrapassaram o tom de cinza de seus personagens, apresentam temas mais
escuros, repletas de vilões, que muitas vezes não chegam a ser punidos por seus
crimes, confessando ou não, ao final da trama, no máximo um pouco de
arrependimento e só; Os tele jornais se tornaram verdadeiros noticiários de
terror, utilizando o sofrimento e medo como escada para alcançar a audiência; e
mesmo os programas infantis que povoavam as manhãs, sucumbiram as novas
tendências sendo substituídos por shows que falam sobre a aparência
"perfeita" e a pseudocultura do corpo e felicidade eterna, em resumo,
estamos vivendo a era da superficialidade e nada reflete mais isso, do que o
entretenimento televisivo que nos acompanha anualmente a quase vinte anos, os
reality shows.
Os Realitys são programas que
mostram a reação de pessoas comuns quando colocadas em situações extremas, ou
pelo menos, deveriam mostrar. No Brasil, o primeiro a surgir foi "No
limite", onde um grupo de pessoas era largado em um lugar desabitado, tendo
de passar por diversas adversidades para conseguir comida, sendo desafiados
durante dias pela natureza e pela quebra de rotina, o programa era baseado no
"Suvivor" americano e tinha a superação física como principal
chamariz, mas sua vida na TV brasileira durou relativamente pouco e com menos
de cinco temporadas o programa foi cancelado. A Tendência atual são os
programas de culinária, como "Cozinha sob pressão" e "Master
chef", que disputam a cada temporada a atenção dos curiosos para saber quem
se sai vitorioso em meio a tortura psicológica e o assédio moral proporcionado
pelos Chefs e juízes, em um retrato distorcido do que é o profissionalismo e
produtividade. Mas, embora as novas tendências arrematem cada vez mais fãs,
ninguém ainda conseguiu superar a longevidade e alcance do reality mais popular
de todos os tempos e que nesse ano completa dezessete edições, criando bordões,
debates e sub-celebridades como nenhum outro programa jamais fez, trata-se do
"Big Brother".
O programa "Big
Brother" foi criado pela produtora de TV Holandesa Emdemol, com base na
ideia de um dos sócios fundadores, John de Mol, que apresentou o projeto onde
quinze pessoas ficavam confinadas em uma casa, sem acesso ao mundo exterior por
qualquer forma e vigiadas vinte e quatro horas por dia, durante três meses, na
busca de um prêmio, sendo o convívio o maior adversário que os estranhos
poderiam ter na busca dessa conquista. O nome do programa veio de como era
conhecido o grande ditador do país continente "Oceania" no livro 1984
de George Orwell, que, por meio de equipamentos chamados tele-telas, presentes
nas casas de todos habitantes do país, vigiava a todos, os mantendo como
cativos livres. O programa foi realizado em diversos países, como no Brasil
onde estreou em 2002 e virou febre desde então, já na Inglaterra, país adotado
por Orwell e que serve de cenário para trama de seu livro mais famoso, o
reality teve seu primeiro episódio transmitido em 2000 e as reações não foram
muito diferentes do que em nossas terras tropicais. No entanto, parece que os
ingleses perceberam muito antes de nós para onde todo aquele show de falsa
realidade estava apontando e da mente brilhante de Charlie Brooker (ele mesmo,
o criador de Black Mirror) estreava em outubro de 2008, “Dead Set” uma das
críticas mais bacanas que o programa já teve.
Os sobreviventes |
“Dead set” é uma mini-série
inglesa, transmitida originalmente pelo canal E4 e gira em torno de Kelly, uma
assistente de produção da casa do Big Brother que no 64° dia de transmissão do
programa e durante a votação de um paredão se vê em meio de um apocalipse Zumbi
que devasta a Inglaterra, terminando por chegar até as portas da emissora de
TV. Com muita sorte, Kelly consegue se salvar ao se refugiar no único lugar
totalmente seguro que sobra, a casa do Big Brother e tendo de mostrar de forma
prática aos participantes que sua presença na casa não é mais uma prova e o que
ela diz é verdade. Enquanto isso, Riq, o namorado de Kelly se encontra do outro
lado da cidade e parte em sua direção sem saber o que encontrará nas ruas, Já o
diretor do programa, Patrick, junto com a última eliminada se encontram presos
em uma sala cercada por zumbis, resta agora que os sobreviventes se reúnam para
buscar entender o que está acontecendo e como eles podem escapar da casa mais
vigiada do reino unido.
O plot da série é bem simples
e lendo a sinopse “Dead set” pode se passar por mais uma série de zumbis
genérica, mas na verdade a produção inglesa de cinco episódios é muito mais que
isso, é um retrato de nosso tempo e de nosso rumo como sociedade.
Baseando os personagens dos
participantes em participantes reais, a série vai nos apresentando estereótipos
que o próprio programa popularizou, como o mulherengo escroto, a gostosa fútil,
a vaidosa burra, o pseudo-intelectual, o marrento e por aí vai, todos fazendo
menção a participantes reais, mas também representando um pouco da
personalidade de quem assiste e se identifica, mas a produção dá um passo além,
quando mostra o mundo da produção do programa, que se apresenta tão baixo
quanto o show que produzem. Lá temos o Patrick, que é o diretor e produtor, que
age com extrema grosseria com todos, é arrogante, relaxado e egoísta; até mesmo
Kelly, a protagonista, é apresentada como um personagem com camadas de cinza,
buscando destaque no meio onde trabalha e traindo o namorado com um colega da
produção e o próprio ambiente onde ambos trabalham é cheio de inveja, descaso e
pretensão, mostrando que o programa é o que é porque é reflexo de uma sociedade vazia.
Essa crítica social é
representada não só pelos personagens que aparecem dentro da casa ou pelos
membros da produção, mas também pelos zumbis. Em Dead Set, os zumbis tem uma
relevância muito maior do que na maioria das produções desse gênero de filmes,
pois na série os zumbis somos nós, a sociedade. O zumbi é o cara comum
anestesiado frente ao entretenimento mais raso, reduzido a bestialidade sem
pensamento que apenas corre em direção a quem faz mais barulho, com a diferença
que na série a ideia de consumir conteúdo fica no sentido gastronômico.
Mas de todas as coisas
bacanas que “Dead Set” tem o que eu acho impressionante é o fato da série ter
sido transmitida originalmente no canal E4, um dos canais que transmitia o Big
Brother UK, e não só isso, a própria apresentadora original do programa no
país, Davina McCall faz uma participação como ela mesma zumbificada, um deboche
típico do humor inglês, que junto com a crítica social passada pelo criador,
deve ter trazido bastante dinheiro aos cofres da emissora, mas que mesmo assim
surpreende bastante.
É por essas e outras que
considero “Dead Set” uma série obrigatória. Misturando critica social, humor e
terror a produção se antecipou oito anos à TV brasileira, que fez algo
superficialmente parecido quando lançou “Supermax” em 2016, sem passar uma
mensagem parecida e obter a mesma resposta da critica e público. Dead Set é uma
série que nos faz pensar no que estamos nos tornando, quando valorizamos apenas
a aparência, quando parecemos não pensar e corremos trás de tragédias ou
entretenimento vazio na TV ou em qualquer outro lugar, então não perca tempo e
assista “Dead set” seja por ser fã do gênero, seja por ser fã de Charlie
Brooker ou simplesmente para se divertir, mas seja rápido, pois a zumbificação
já começou e não há para onde correr.
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