Meu gosto por ficção
científica nasceu da vontade de enxergar através da visão dos
outros como poderia ser o futuro, por esse motivo, sempre preferi
autores que me entregassem mundos que fossem uma evolução do nosso
em algum sentido, seja introduzindo a inteligência artificial como
algo normal e corriqueiro, seja nos apresentando uma sociedade
dividida em grupos, ou mesmo mostrando aonde os absurdos que o
extremismo pode acabar nos levando. Mas nesse meu desejo de olhar
para frente, acabei dando pouca atenção para obras de escritores
que foram responsáveis por, além de fundamentar o gênero e
inspirar muitas outras histórias e produções, falar diretamente
com seu tempo e mostrar pioneirismo em utilizar muitos conceitos
abordados até hoje. Um desses autores, foi H.G Wells, a mente
criativa responsável por obras como "A máquina do tempo",
"O Homem invisível", "A guerra dos mundos" e "A
ilha do Dr.Moreau", livro de 1896, que li recentemente e que me
surpreendeu por abordar, além das questões relativas a ciência da
época, muito sobre ética, religião e filosofia, reabrindo meus
olhos sobre a necessidade de se conhecer os clássicos.
"A ilha do Dr. Moreau"
conta a história de Prendick, um náufrago sobrevivente do navio
Senhora Altiva, que é resgatado em auto mar e levado, pelo médico
Montgomery, que alugava a embarcação que o salvou para transportar
animais, para uma ilha vulcânica no pacífico. Nessa Ilha, ele
conhece o Dr. Moreau, um cientista que usa o lugar como laboratório
de suas misteriosas experiências. Conforme os dias vão passando,
todo mistério presente naquela porção de terra isolada vai se
esclarecendo e Prendick descobre que Moreau e Montgomery, na busca por
humanizar animais, utilizando experiências de Vivissecção e
hipnose, criaram uma assustadora sociedade de seres disformes, meio
homens e meio animais, com leis e religião própria. Mas será que
os esforços dos cientistas serão o bastante para que os
homens-animais consigam ignorar sua natureza inata?
Quando comecei a ler o livro
tinha a sensação de que a história tinha pouco de novidade, como
se eu já tivesse encontrado tudo que o autor queria me passar em
outras obras, sem perceber que essa sensação era originada
justamente da influência de H.G Wells na cultura pop. Isso me veio
a mente ao lembrar que meu primeiro contato com esse livro, foi a
adaptação para o cinema lançada em 1996, exatamente cem anos após
a primeira publicação da história, sendo que esta foi a terceira
produção áudio-visual baseada na obra, antes foram lançados outro
filme homônimo em 1977 e "A ilha das almas selvagens", em
1932; só após perceber isso e buscar ler o livro com olhos da
época, assim compreendendo que o que o escritor entregava era algo
original e pioneiro, pude apreciar toda criatividade e visão do
autor, mergulhando em um universo que, mesmo datado no que tange a
muito que ele aborda como ciência (a final, o livro tem mais de 120
anos), apresenta conceitos presentes até hoje na ficção e
discussões sociais interessantes que deixam claro porque Wells se
tornou um dos maiores nomes da ficção científica da história.
Homem-Leopardo (filme de 1996) |
O que mais chamou minha
atenção no livro foi a questão social que a história aborda. A
obra trás todo um paralelo impossível de se ignorar sobre a ideia
de superioridade que muitos povos, no decorrer dos tempos,
acreditavam possuir, assim como a violência de se impor os costumes
e ideais sobre quem se encontra sob o julgo destes povos. Os homens
animais que vivem na ilha, são forçados a ignorar sua natureza,
cumprindo regras impostas que não lhes permitem caçar ou consumir
carne, andar de quatro patas e não sugar a água com a língua, em
resumo, eles não podem ser o que são por contrariarem as ideias que
Moroe tem de sociedade, mesmo o doutor e seu associado representando
uma minoria na ilha e sendo eles próprios desprezados pela sociedade
que usam como base por ignorar a ética em suas experiências, uma
evidente representação da opressão colonizadora européia do
século XIX. O próprio choque com os costumes e aparência dos
nativos da ilha, que se torna frequente na narrativa do protagonista,
corrobora para a visão de superioridade social que parece ser
parodiada diretamente do contexto histórico inglês, sociedade a
qual o escritor pertencia e que na época da publicação do livro,
se encontrava dominando lugares tidos como exóticos, como a índia
e Hong-kong, onde impunham suas maneiras,cultura e mesmo a religião.
Falando em religião, o uso da
mesma como ferramenta de dominação é outra parte muito
interessante da trama. Na história, o autor traz como regulador dos
desejos e instintos da sociedade da ilha uma série de leis que,
somadas a superioridade intelectual e de personalidade dos
cientistas, atuam como uma religião para os homens animais, impondo
limites a seus instintos primitivos mesmo quando as criaturas se
encontram longe dos olhos de seus criadores e fornecendo a esses,
status de deuses imortais e de poderes absolutos de vida e de morte
dentro daquela sociedade, sendo, ao grupo das criaturas, reservado o
destino de servos e escravos passivos, temerosos de um castigo
proveniente de qualquer deslize.
A hiena entre outros (filme de 1996) |
Um fato que não me agradou
muito no livro é a forma descritiva que o autor faz de todos
pormenores que o protogonista encontra na ilha. Fora os animais
humanizados, que são o tema central da trama e que refletem as
experiências nada éticas do cientista que tem seu nome estampado no
título do livro, descrever todos detalhes da ilha, incluindo como se
forma sua costa, o tipo de terreno e vegetação, parece uma forma de
enxerto para estender a história e por vezes isso cansa; essa forma
detalhista era bastante utilizada em muitos textos da época e até um
pouco depois, como visto em "Senhor dos anéis", onde
Tolkien chega a falar do formatos das folhas das árvores, mas ,
embora não prejudique a leitura em si, ou atrapalhe a reflexão
sobre o tema central, quebra bastante o ritmo de quem está
acostumado as dinâmicas tramas modernas.
No entanto, mesmo com uma
variação no ritmo, "A ilha do Dr. Moreau" se apresenta
como um livro obrigatório para quem é fã de ficção científica,
do mesmo modo que toda obra de Wells. Consegue se sustentar e
entregar uma história divertida e por vezes assustadora, onde,
embora pareça datada por utilizar conceitos de ciência biológicas
do século XIX, é bastante atual quando trata de ciências sociais,
batendo em pontos que até hoje são abordados, como opressão
cultural, o poder da religião e a ética científica. Uma aula de
como utilizar a ficção para desconstruir a sociedade onde
vivemos, me fez reabrir os olhos para os clássicos e perceber que
não há visão de futuro, se não observarmos com certa reverência
o passado que o moldou.
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