Quem me conhece sabe o quanto
sou fã de distopias. Mundo destruídos pela ignorância, violência
e repressão, tipo... o nosso; talvez venha daí meu gosto pelo
gênero, a realidade por trás da obra, para mim uma distopia bem
apresentada mostra através de alegoria, critica e, por vezes, ironia
o verdadeiro espirito humano, essa coisa maravilhosa, terrível cheia
de facetas, tanto que mesmo depois de ter lido os clássicos e os
Pop's e, assistido a muitos filmes, parece que sempre se pode ir mais
além. E nessa busca por mais me deparei com uma obra inesperada,
vindo das ilhas britânicas no ano de 2015 e cheia do espirito grego,
trata-se de "The Lobster" escrito e dirigido por Yorgos
Lanthimos e estrelado por Colin Farrell e Rachel Weisz, e que me deu
outra visão do que pode ser uma distopia.
A história é a seguinte:
Em um futuro próximo, as
pessoas são proibidas de serem solteiras e, após completarem a
idade apropriada (ou se separar, ou ficar viúvo) são enviadas para
um lugar conhecido apenas como "O hotel", onde durante 45
dias (após deixar clara sua orientação sexual) irão interagir com
outras pessoas na busca de um novo conjugue. Neste lugar, entre um
baile e um passeio no campo, os hospedes são reunidos para ir à
floresta caçar "solitários" (pessoas que fugiram do
sistema e vivem em bando no meio do mato, mas sem um parceiro), cada
solitário capturado dá direito a um dia a mais ao caçador no
Hotel, se esse prazo de dias vencer e o hospede não encontra um
parceiro, ele é transformada em um animal de sua preferência e
solto na natureza.
Nesse mundo somos apresentados
ao protagonista (Colin Farrel), um homem que depois de onze anos de
casado percebe que sua mulher não o ama mais e resolve se hospedar
no Hotel na busca de uma nova parceira. Acompanhado por Bob, seu
irmão, que anos antes não conseguiu encontrar alguém que o
completasse nessa mesma instituição e agora vive seus dias na pele
de um cachorro, o protagonista ficará hospedado no quarto 101 e na
busca de um novo amor, fará "amigos", se apresentará ao
público, participará de bailes e palestras, sairá em caçada na
floresta, verá gente desistindo da vida e mentindo para encontrar
alguém, e no final encontrará o amor que busca entre os solitários
que era obrigado a caçar para obter mais tempo , mas não sem antes
nos apresentar os sutis terrores de uma sociedade que sacrifica a
originalidade e individualidade de seus integrantes.
E aí vale a pena?
A primeira coisa que chamou
minha atenção em "The Lobster" foi a narrativa do filme.
O filme tem um quê de conto literário no melhor estilo Phillip K.
Dick, com a narradora explicando os pensamentos do protagonista, como
Dick fez em certos momentos de "O homem duplo", utilizando
de uma ironia fatalista quase imperceptível, enquanto os personagens
presentes na tela dispõem de momentos de silêncios cheios de
expectativa que explicam mais da realidade onde eles estão inseridos
do que diálogos longos fariam. Por tal motivo, a narração em off,
que em muitos filmes é extremamente criticada, aqui serve como uma
luva,nos mostrando um mundo sínico e desconfortável através do
conhecimento de uma pessoa ( Rachel Weisz ) sobre o ponto de vista de
outra ( Colin Farrell).
A montagem, a fotografia e a
trilha sonora são muito bacanas. O filme segue uma sequência de
acontecimentos onde a boa montagem consegue nos apresentar todo o
contexto de forma competente tapando as lacunas sobre a realidade do
que acontece fora do Hotel, que propositadamente é quase que
ignorada, mas não sem antes permitir pequenos vislumbres que nos
expliquem como a sociedade apresentada funciona. Já a fotografia é
muito bonita, apresentando planos abertos com lindas paisagens
inglesas e closes em detalhes que ajudam a narrativa do filme a não
depender de diálogos para explicar o pensamento dos personagens, ou
até excluindo certas figuras e pessoas do foco para demonstrar sua
irrelevância ou pequenez em relação ao todo, sendo isso tudo ainda
acompanhado por uma trilha sonora que por vezes aditiva a tensão e
ainda reafirma a solidão que aqueles personagens vivenciam, destaque
para a música da primeira caçada que o protagonista participa (Fron
inside Dead (cantada em grego)) e que fala justamente de solidão e
superficialidade, e para a música cantada pela diretora do Hotel e
seu parceiro (something's gotten hold of my heart), que fala sobre se
sentir completo, enquanto os cantores estão visivelmente se sentindo
vazios.
Sobre o protagonista, o
próprio fato de a narração de sua história ser efetuada por uma
pessoa que ele só conhecerá no segundo arco da história fala muito
sobre ele. Sua personalidade parece estar sempre em conflito entre
quem ele é e quem deve ser, como se houvesse em si uma semente de
revolta reprimida por um mundo tão hostil e que exige que tudo seja
tão absolutamente controlado, que essa semente vive latente e se
manifestando em suas dúvidas. Desde o início nos deparamos com o
protagonista questionando e ao mesmo tempo aceitando a vida como ela
é, no ato de cadastro do hotel , ao perguntarem sua preferência
sexual ele opta por heterossexualidade, mas confessa ter tido uma
experiência homossexual na faculdade, o que o faz pensar durante
longos segundos sobre qual deveria aderir; o mesmo caso se faz
presente quando ao passar pela triagem na instalação, uma das
empregadas lhe pergunta o tamanho do sapato , ao que ele responde 44
e meio, o que causa uma nova escolha entre 44 e 45, deixando claro
sua natureza questionadora em uma sociedade onde não há meio
termos e sua tendência de acabar indo ao encontro da maioria. Colin
Farrel está ótimo, claro que parecer um porta sem personalidade não
deve ser difícil, mas ele convence com seus silêncios e olhares,
assim como com sua aparência que foge a do galãzinho que lhe deu
fama. Algo que também parece ocorrer com Rachel Weisz que também
está muito bem no papel, embora não seja tão marcante quanto em "O
jardineiro fiel", mas que consegue fazer com que o espectador se
importe com seu personagem e torça por ele. Uma parte disso se deve
a capacidade da atriz conseguir transmitir doçura e fragilidade, mas
com aquele toque de personalidade través de seu personagem, sem
falar da narração que ela faz, de forma monótona do filme, é muito
engraçada e é perfeita na marcação da história.
Como distopia o filme me
surpreendeu e me apresentou novas possibilidades. Um fato marcante na
história é semelhante ao que acontece no livro "Batle Royale"
de Koushun
Takami, onde
somos jogados dentro da história como se fossemos amigos que chegam
no meio de uma conversa e não entendem todo o assunto, então o fato
é que existe uma série de questões, mas dentro destas somos
apresentados a um caso especifico que nos permite saber apenas poucos
pormenores
relativos
a uma realidade
mais rica e complexa e , isso eu acho muito legal! É o não explicar
e mesmos assim não confundir; há algo maior e terrível, mas não
precisa ser exposto ali, porque não é importante para o contexto
que vamos seguir enquanto a história é contada. No
entanto, a grande distopia se apresenta sempre através de quem a
sofre e nesse filme vemos isso pelo comportamento robótico e
amargurado dos personagens, vítimas de um mundo que os obriga ao
"amor" forçado, talvez para evitar que tenham tempo de
pensar sozinhos sobre os problemas que os cercam, o mais terrível do
filme é ver que o mundo apresentado já está tão cristalizado que
até mesmo quem se rebela contra o sistema, ainda assim é vítima de
suas leis tal qual nosso casal de protagonistas
O
filme
vale muito a pena. Apresenta um novo modelo de distopia, não tão
violenta como um "1984", ou tensa como a presente em "O
homem do castelo alto", mas tão esmagadora como ambas e, só
isso para mim já é 50%, mas
além
disso há uma profundidade delicada no filme, que faz com que nos
coloquemos no lugar daqueles personagens e sintamos o amargor da
imposição e tristeza da solidão, é um filme que nos faz pensar
sobre o mundo onde vivemos,
que exige cada vez mais que façamos parte de algo e ignorar e
excluir quem pensa e age diferente. Por esse mérito, além da parte
técnica, das interpretações e estilo,
considero "The Lobster" um filmaço, que
merece ser assistido e re-assistido, poderia
me estender ainda mais falando sobre os solitários e o plano de sua líder para desestabilizar o sistema, ou sobre os amigos do
protagonista e seus destinos, ou ser mais sacana e falar como o casal
de protagonistas acaba, mas não quero estragar a surpresa de quem ,
assim como eu, gosta do estilo, posso apenas dizer que o filme tem
esse nome, pois é o animal que o protagonista escolheria se tornar
caso não encontrasse alguém, uma Lagosta, pois, segundo ele, as
Lagostas vivem mais de cem anos, permanecem férteis durante toda
vida e tem sangue azul como a aristocracia (ignorando o fato de que
são apreciadas como prato refinado).
Um
filmaço, distopia para valer, com aquela humor negro inglês e um profundo
espirito
Grego recomendadíssimo.
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