Quando eu tinha dezenove anos
, trabalhei em uma loja de conveniências em um posto de combustível
no turno da noite. O serviço era mecânico e cansativo (como a
maioria dos empregos), passávamos das vinte duas horas à uma da
manhã atendendo o pessoal que ia ou vinha do trabalho ou a gurizada
que partia para a noite, depois, eu e mais dois colegas de turno, nos
dedicávamos até as seis e meia da manhã, ou a conversas longas
sobre futebol e clima, ou a assistir os filmes da TV, que como
naquele tempo o posto não possuía TV a cabo nos restringia à boa e
velha rede globo com seu corujão ou a falecida intercine.
Foi em uma dessas noites de
Cinema global que assisti ao filme "O Xango de Baker Street",
filme baseado no livro Homônimo de Jô Soares e dirigido por Miguel
Faria Jr e que me surpreendeu pela produção, diversão e
originalidade, tanto que marquei o livro para ser lido desde então
(quase quinze anos) e que agora, depois de ter casado, ter um filho,
plantado duas árvores, comprado um carro, construído uma casa e
terminado a faculdade consegui fazer tendo conseguido a mesma
sensação com o livro que o filme me causara na época.
O livro conta a história de
misteriosos assassinatos que ocorrem no Rio de Janeiro no final do
segundo império. Um assassino misterioso causa perplexidade na
polícia ao, sem causa aparente, matar e arrancar as orelhas de
mulheres durante a noite, deixando em seus pelos pubianos um corda
de violino. Ao mesmo tempo, O Violino Stradivarius da baronesa de
Avaré, que foi dado por Dom Pedro II é roubado e o imperador,
aconselhado por uma atriz Francesa de grande prestígio, resolve
pedir ajuda a um famoso detetive inglês chamado Sherlock Homes para
solucionar o misterioso roubo do instrumento. Os fatos que vão se
revelando cada vez mais ligados, colocando toda corte como suspeita e
apresentando a Holmes, juntamente com todos costumes e jeitinhos
brasileiros, um dos maiores desafios para seus dons dedutivos.
Cara, o Livro é muito bom!
Trás a agilidade de raciocínio e senso de humor de um Jô soares
livre das modernas amarras globais, seu estilo de escrita é leve e
convidativa (porta de entrada para quem gostaria de começar a ler),
sendo contrabalanceada por uma ambientação realista em um Rio de
Janeiro que sonha ser uma cidade européia, com todas contradições
e disparates que isso significa em uma cidade tropical.
elementar meu caro |
A história é repleta de
personagens históricos e o legal é que todos estão lá por um
motivo e não como parte do cenário, tanto que jô dá voz a todos
respeitando o que se conhece de suas personalidade e vida, no
entanto, dentre esses personagens ninguém fala tão alto como os
hábitos brasileiros. Tanto no livro quanto no filme (que teve o
roteiro escrito por Miguel Faria jr e Patrícia Melo) o grande
antagonista, fora o assassino, é o ambiente; o Brasil é retratado
até a nós brasileiros, como uma terra exótica, onde as pessoas
vestem-se com pesadas roupas no melhor estilo europeu em um calor
tropical, misturam a gastronomia européia à africana e estão
sempre dispostas a perder o amigo mas nunca a piada; é uma terra de
riso souto mesmo frente a morte mais terrível, onde o apadrinhamento
vale mais do que o talento, a bajulação reina e onde a aparência
vale mais do que a essência, uma sátira a sociedade brasileira que
parece não ter mudado nada.
Watson e Sherlock inventando a "caipirinha" |
Sherlock Homes e seu fiel
amigo Watson, caem de paraquedas nesse ambiente insólito se
esforçando o máximo, sem nunca conseguir por completo, entender os
costumes desse lugar onde foram jogados. Sobre isso, quem mais mais
transparece esse estarrecimento é o pobre doutor, que é a
personificação de uma ingenuidade inglesa na terra de malandros,
enquanto Sherlock fala um português lusitano fluente (pelo fato de
ter estudado sobre venenos com um "lisboeta" em Macau)
Watson, acompanha o amigo sem literalmente entender uma única
palavra, exposto apenas ao que os olhos lhe mostram; Sherlock, mesmo
fluente na língua de camões, é retratado como alguém de juízo e
deduções duvidáveis, fato amplificado pelo uso que faz dos
"cigarros índios de Cannabis" que lhe são apresentados
pela bela mulata Ana Candelária por quem se apaixona e pelas manias
que o detetive tem de ter opinião sobre tudo apenas dedutivamente ou
de se "disfarçar", como quando vai juntamente com o delegado
responsável pela investigação sobre os assassinatos em um manicômio
vestido de marinheiro, trajando além da farda, um nariz postiço,
gancho na mão e perna de pau , sendo que todos o conhecem dos
jornais(hilário). Confesso que a principio fiquei um pouco
contrafeito pela decisão do autor de colocar o maior detetive do
mundo (fora o Batman) como um abobado, mas com o passar dos capítulos
entendi que o ambiente é tão louco que nem o maior gênio da
investigação dedutiva poderia se sobre por à esses manicômio sem
muros que é o Brasil.
O mistério que gira em torno
do assassino e sua personalidade também é um ponto forte, assim como o clima que Jô Soares cria para narrar os assassinatos e a
descrição das mortes, me fez ter nossos sinistros por dois dias.
Desde o início do livro todos personagens são apresentados como
suspeitos, mas só vamos fazer o link entre as pistas e o assassino
ao final do livro e através do esclarecimento do próprio assassino,
e o legal é que as pistas deixam o assassino na nossa cara e só
percebemos bem depois, quando juntamos os detalhes mais corriqueiros
apresentados sobre o personagem que é o assassino e as passagens do
livro que falam dele aparentemente sem pretensão . O mais bacana da
história é, no epilogo, ainda trazer revelações sobre o
assassino e dando continuidade a sua história, que como em todo
bom romance histórico se mescla com o real.
Ana Candelária, a paixão tropical de Holmes |
O livro não perde nada para o
filme e vice-versa. Ambos são muito bacanas e merecem ser
celebrados. Infelizmente o brasileiro ainda carrega seus preconceitos
em menosprezar toda produção nacional de cinema e busca igualar os
livros brasileiros voltados para diversão com os grandes clássicos
de nossa língua; isso enquanto assiste transformers e lê 50 tons de
cinza (uma pena!), pois quando somos bons (mesmo colocando muito
humor na receita) somos bons de verdade.
O que posso dizer é que a
escrita ágil de Jô e seu humor negro despertou em mim uma vontade
de ler mais de suas obras. Com certeza vou buscar um tempo para ler o
"Assassinato na Academia brasileira de letras" e "As
esganadas" , que pelo que eu li seguem uma linha parecida. Deixo
a dica de "O Xango de Baker Street" Um livrão que por sua
crítica social leve, mas ácida, continua atual mesmo depois de
vinte anos de publicação, continua atual e, pela diversão que o
livro proporciona, sendo uma agradável leitura para quem quer
relaxar e uma porte de entrada ao mundo dos livros para quem começa
s se interessar por literatura e ficção.
Gostaria de saber porque o título do livro é Xangô? Adorei a resenha!
ResponderExcluirO título faz referência ao Orixá da Justiça no Candombé (xangô) e menção ao endereço de Sherlock. Sherlock seria então essa figura mítica de Justiça.
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