19 de Maio de 1845. O
Terror e o Erebus, dois dos navios mais bem equipados da marinha Britânica,
partiam da Europa em direção ao circulo polar ártico na intenção de descobrir a
tão sonhada “passagem do Noroeste”, uma rota navegável que ligaria o atlântico
norte ao oceano pacífico, facilitando a busca de especiaria e o comércio com o
Oriente. Tendo o experiente explorador Sir John Franklin, veterano de outras
três missões ao continente gelado, como comandante da expedição e como capitão
do HMS Terror, Francis Krozier, do HMS Erebus, James Fritzjames e possuindo uma
tripulação conjunta de cento e trinta homens, ambos os navios foram avistados
por barcos baleeiros na bahia de Baffin em Julho do mesmo ano, aguardando o
melhor clima para adentrar o labirinto gelado do mar do polo norte, depois
daquele dia ambos navios e seus tripulantes, nunca mais foram vistos.
Inspirado nessa assustadora e fascinante história
real, o escritor americano Dan Simmons publicava em 2007 o livro “O Terror”, misturando
as mais recentes descobertas sobre o possível trágico destino dos marinheiros
ingleses com uma assustadora trama sobrenatural que transita entre a misteriosa
mitologia Inuit e os limites da mente humana levada ao extremo em uma situação
desesperadora. O livro não passou despercebido e, com a produção de Ridley
Scott e contando no elenco com atores como Jared Harris, Tobias Menzies e
Ciarán Hinds chegou ao canal AMC este ano, sua a adaptação televisiva , trazendo
para TV um terror sutil e envolvente por sua estranheza, que apresenta uma
dezena de personagens e pontos de vista e que presta uma terrível homenagem a
um dos maiores mistérios do século XIX, em uma das melhores coisas que assisti
nesse primeiro semestre de 2018.
Jared Harris (esq) e o verdadeiro Krozier em foto de 1845 (dir)
A Série é protagonizada pelo capitão Franscis
Krozier (Jared Harris), que amargurado por uma rejeição amorosa, parte para o
ártico no comando do navio HMS Terror, sendo acompanhado de perto pelo navio
HMS Erebus, de onde Sir John Franklin (Ciarán Hinds), tio e tutor da mulher que
o desprezou, comanda a expedição mais ousada da marinha da rainha Vitória. No
entanto, a pouca sorte na vida íntima se apresentará como o menor dos problemas
do capitão Krozier, quando poucos meses após adentrar o ártico ambos os navios
acabam presos no gelo, dando aos marinheiros a paciência pela espera do degelo
como única alternativa, o que começa a se complicar quando uma equipe que
procurava sinais de descongelamento longe dos navios acaba baleando por engano
um misterioso xamã esquimó que atravessava o deserto de gelo junto com sua
filha. A partir desse dia, uma maldição parece subir a bordo, com os
marinheiros se vendo vítimas de envenenamento por chumbo, tendo seu estoque de
comida destruído e sendo caçados por uma estranha criatura sobrenatural, que
embora lembre um gigantesco urso polar, parece raciocinar e planejar dar cabo
da tripulação. Todas essas situações vão insuflar o caos, o amotinamento e a
total selvageria entre a tripulação, sobrando ao capitão Krozier e alguns de
seus aliados, a tarefa de buscar sobreviver em meio ao pesadelo gelado onde
ficarão presos por mais de três anos.
Que série fantástica! Fugindo do
convencional e transportando o expectador para uma trama que especula sobre um
mistério de mais de 170 anos temperado com doses certas de suspense e
sobrenatural, “O Terror” faz jus ao nome e apresenta uma história com momentos
que flutuam entre a construção de tensão de um Stephen King e a loucura que a
estranheza total, no melhor espirito Lovecraftiano, pode causar.
No tocante a construção da tensão e todo
estranhamento que a série possui, a direção e produção se destacam por escolhas
que parecem prender ainda mais quem assiste frente a TV. A vasta paisagem
branca e gelada, quase sempre contendo apenas o som do vento como complemento,
quando não uma música com notas destoantes que consegue transmitir ares de
solidão ao mesmo tempo em que se assemelha a um sonho, são tão essenciais na
série quanto suas dezenas de personagens que, com destaque no que vemos ou
apenas como pontas, nos indicam todas as facetas da situação.
Tobias Menzies (esq) e o verdadeiro FritzJames (dir) foto de 1845
Dentre esses personagens, vale a pena
destacar alguns que, junto com o Capitão Krozier, Capitão Fritzjames e Sir John
Franklin, marcam outros núcleos e encabeçam questões que vão movendo a trama. Dentre
os de maior destaque temos o tímido assistente de cirurgião Henry Goodsir (Paul
Ready), que em meio ao caos e barbárie que vai crescendo é uma das poucas
pessoas que tenta fazer os companheiros ouvir a voz da razão, assim como é quem
investiga as causas dos males de saúde que começam a aparecer entre os
exploradores, sem dizer que é ele que contando apenas de paciência e empatia,
vai buscar aprender a falar a língua dos esquimós para tentar encontrar
respostas da misteriosa Lady Silence, a filha do Xamã que é morto por acidente.
Essa, por sua vez nos conecta com a mitologia Inuit e o sobrenatural, nos entregando
lentamente que por trás daquela sequência de problemas que os tripulantes dos
navios vão enfrentando, há uma verdade que vai além da compreensão mundana.
Mundano, talvez seja a palavra que melhor
defina o vilão da trama. Cornelius Hickey (ou seja lá quem ele é realmente) não
parece não possuir escrúpulos para sobreviver e é capaz de queimar seus
próprios companheiros como combustível se isso significa sobreviver. Ele surge
discreto e, tal qual a trama, vai crescendo e ganhando força ao liderar o motim
que divide a tripulação e, seu cinismo e violência tomam tamanha proporção, que
ao final dos dez capítulos fica difícil de saber se o verdadeiro monstro a ser
temido é o Tuunbaq (a criatura que persegue os marinheiros) ou o próprio
marinheiro Hickey.
Ciarán Hinds (esqu) e Sir John Franklin (foto 1845)
Mas nem tudo é perfeito em “O Terror”. Por
resumir um livro de mais de 700 páginas em uma série de dez episódios, muito do
aprofundamento da relação dos personagens fica parecendo vago e parece que algo
nos escapou. Um exemplo é a estranha relação entre o médico Dr. McDonald com um
dos marinheiros do Erebus, que remete a um caso amoroso, mas que não fica bem
claro. Do mesmo modo que não fica claro o exato momento que, já sem alimentos e
tendo de abandonar os navios, o grupo que acompanha Cornelius Hickey aceita,
sem discutir de forma mais ampla, consumir a carne dos companheiros mortos, ou
a medida exata em que o Tuunbaq é racional e qual sua verdadeira relação com
lady Silence. Mas ao final, até essas pontas soltas ajudam a tornar mais densa
a sensação de mistério que a produção traz.
Presos no gelo
Mas apesar de seus problemas no
aproveitamento total dos personagens e suas relações, “O terror” foi uma das
melhores séries que assisti nesse inicio de ano. Sua produção é lindíssima e a
sua trama fascinante, principalmente ao lembrar que parte dessa história
terrível é real, com a descoberta de que problemas com a solda dos enlatados da
expedição permitiram que a comida estragasse antes do tempo e que, com base na necropsia
de três corpos da tripulação, encontrados enterrados na ilha canadense de
Beechey , houve realmente um envenenamento por chumbo, além de os marinheiros sofrerem
com o Escorbuto e a tuberculose; a tradição esquimó da região conta história de
luta entre tripulantes e atos de canibalismo sendo que apenas em 2016 (quase
dez anos depois do lançamento do livro) os restos dos navios foram encontrados
no mar canadense, encerrando um mistério de mais de cento e setenta anos, mas
não as circunstâncias e o que realmente aconteceu com a tripulação da expedição
de John Franklin.
Então se quiser algo diferente para
assistir, que transite entre o real e o sobre natural, com uma produção
caprichada e boas atuações, além de uma história que te prende; embarque no
Terror e também se perca na imensidão gelada do desespero humano. Garanto que
você não se arrependerá.
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