Estamos vivendo tempos
estranhos. Dias de verdades alternativas e ignorância histórica,
onde a promessa da construção de muros que dividirão os escolhidos
dos condenados é aplaudida de pé por grande parte da população,
onde quem se impõem através de uma propaganda violenta é chamado
de "mito" e o diferente se tornou errado e inimigo, e, isso
tudo acontece enquanto as pessoas estão absortas em seus celulares e
compartilhando suas vidas através de redes sociais, ignorando o rumo
do mundo e os perigos do que podem estar por vir. Estamos a um passo
de uma distopia e em dias como estes, obras que conversem com o
momento da sociedade e nos apresentem uma ideia de onde o próximo
passo pode nos levar são de extrema importância.
Foi buscando uma obra que
espelhasse o que vivemos, que me deparei com um livro muito pouco
comentado, mas que me ganhou desde suas primeiras linhas, me
apresentando um universo distópico tão real e assustador quanto
fantástico. Estou falando de "Uma história de amor real e
supertriste" de Gary Shteyngart, publicada no Brasil pela
editora Rocco, que além de reafirmar minha paixão por distopias, me
passou a ideia de que o futuro de uma sociedade consumista e vaidosa,
pode ser ainda mais amargo e vazio do que imaginamos.
Capa da Edição da Rocco |
"Uma história de amor
real e supertriste" se passa em um futuro próximo, onde os EUA
estão vivendo os piores de seus dias, vítimas de uma crise
econômica e política que foi intensificada com um fracasso militar
na Venezuela, o que colocou o país em um cenário de caos, postes de
crédito ornamentam as ruas, registrando os dados dos "Apparats"
(equipamentos que todos possuem e que servem para mandar mensagens,
como identificação e acesso a dados pessoais) e em que pessoas de
baixo patrimônio ficam a mercê do estado e veteranos de guerra não
recebem suas pensões, sendo obrigados a ocupar o Central park na
procura de abrigo, manifestações eclodem em toda parte e são
contidas com violência pelo exército de segurança nacional, o
braço armado do partido "bi-partidário", a última
lembrança dos tempos de democracia, a economia é baseada na moeda
chinesa, que comanda o FMI e as grande empresas são todas fatias de
enormes conglomerados financeiros.
Nesse mundo, que parece mais
crível do que distante, encontramos Lenny Abramov, um novaiorquino
de 39 anos, filho único de imigrantes russos, possível último fã
de literatura e escritor de um diário, que trabalha para uma
multinacional na divisão de serviços Pós-humanos, oferecendo
imortalidade a pessoas de alto nível social e financeiro. A procura
de clientes ele á mandado para Itália, onde acaba conhecendo
Eunice Park, uma vaidosa e orgulhosa jovem, descendente de Coreanos
por quem se apaixona perdidamente. No entanto, com o fracasso em
convencer os ricos europeus em participar dos projetos de seu
empregador, Lenny se vê obrigado a retornar a Nova York e a
realidade de seu país, mas sem esquecer Eunice, a convida para vir
morar com ele, resta agora ao pertenço casal, tentar se entender e
adaptar-se, não só ao mundo em sua volta que desmorona frente a
violência e ignorância, mas um ao outro, tão diferentes pela
origem, idade e pontos de vista.
Como disse acima, o livro me
ganhou em suas primeiras páginas, sei que é suspeito vindo de uma
pessoa que se confessa fã de ficção científica e distopias sempre
que tem oportunidade, mas o fato é que "Uma história de amor
real e supertriste" mexeu comigo por apresentar um cenário
assustador, personagens profundos e com motivações bem claras e
conseguir dar atenção tanto ao mundo catastrófico que serve de
palco para a história, quanto nos passar a evolução desses mesmos
personagens no decorrer da leitura, seguindo a cartilha da boa ficção
científica que está além da apresentação de tecnologias ou
especulação de um futuro, mas na apresentação do impacto que
todas as mudanças que podem ocorrer no mundo, podem causar na vida
das pessoas e isso, esse livro faz com qualidade.
Um fator que achei importante
no livro, e que conecta ainda mais o leitor a história, é o fato
desta ser escrita em primeira pessoa, apresentando os pontos de vista
do casal em capítulos que se alternam entre o diário de Lenny, que
escreve para desabafar e se planejar, e, as mensagens de Eunice no
"Globalteens" a rede social da época, que teima em dar
dicas sobre como agradar os garotos e frisar que fotos e vídeos são
mais interessantes do que textos. Esse clima íntimo nos coloca como
cúmplices de seus pecados e frustrações, revelando também o
choque de gerações que existe entre ambos, ele mais velho quase
quinze anos, barrigudo e ficando careca, totalmente fora dos padrões
de beleza e estilo vigentes em uma sociedade toda voltada para os
jovens e seus hábitos fitness, e ela, o retrato de sua geração,
extremamente magra, irônica e consumista, não desgrudando de seu
"Apparat", por onde faz compras, conversa com amigos e
família, faz "Streams" e ranquei as pessoas que a cercam
por seus níveis de beleza, sensualidade e "fodabilidade",
mas ambos demonstrando, através de seus depoimentos, o peso de se
viver em uma sociedade vazia de valores e voltada para a aparência.
Essa mesma sociedade, que
serve como pano de fundo da história de amor de Lenny e Eunice, é a
parte mais fantástica do livro. O vazio e amargo futuro imaginado
por Shteyngart, consegue ser original, extremamente real e ao mesmo
tempo homenagear os clássicos sem os imitar, nos entregando uma
sociedade que é um amalgama das duas distopias mais famosas de todos
os tempos, "1984" e "Admirável mundo novo", com
o tempero ácido dos dias de hoje, onde temos tanques nas ruas,
violência do estado, pessoas vistas como descartáveis, ao mesmo
tempo em que a sociedade é alienadas em seu mundo de prazer virtual,
ignorando a cultura mais crítica e em especial a literatura
(chegando a dizer que livros fedem e que é preferível que não se
tenha contato) e o sexo é algo tão banalizado que a protagonista
chega a fazer menção a uma amiga sobre uma atriz pornô que elas
assistiam quando estavam no jardim de infância!! Uma mistura
pontual entre repressão violenta e descaso total presentes
separadamente nos dois clássicos, fatos que são somados à
dependência pelas mídias sociais e tecnologias, tão presente em
nosso cotidiano e que no livro é personifica no onipresente Apparat,
o elemento que desempenha um papel de destaque por pautar o estilo de
vida das pessoas e as ranqueando dentro da sociedade.
Gary Shteyngart |
Esse "Aparat", que
representa a evolução da forma atual de nossa própria sociedade
interagir, parece demonstrar a qualidade e impacto da história
contada pelo autor dentro da própria cultura pop, ao lembrar
bastante o modo de utilização do aparelho visto no primeiro
episódio da terceira temporada da aclamada série "BlackMirror", onde temos uma sociedade tão vaidosa e vazia como a
presente no livro de Gary Shteyngar, que embora não sofra dos mesmos
problemas sociais (pelo menos, não dentro do arco que o episódio
mostra) também é toda baseada na ideia que o próximo tem de cada
um e no ranking de seus cidadãos para o crescimento social.
Somado ao onipresente Apparat,
Shteyngart ainda imagina uma divisão empresarial que entrega aos
poucos cidadãos de alto nível financeiro a possibilidade de viver
para sempre, através da utilização de nano robôs, dentre outras
coisas, que manipulam a saúde dos clientes da "Wapachung",
empresa de Joshie Goldmann, patrão de Lenny e que por principio age
de encontro a toda situação em que se encontra a grande maioria da
população, que luta para sobreviver, em um mundo onde a escassez é
a lei e quem não possui dinheiro tem de se esconder dos postes de
crédito para não correr o risco de ser deportado ou mesmo morto,
frisando assim o egocentrismo e falta de empatia presente naquele
mundo.
Os motivos para se ler "Uma
história de amor real e supertriste " são muitos; sua
narrativa cúmplice, seu universo deprimente e extremamente real e
seus personagens bem explorados, tudo parece colaborar para que a
obra de Gary Shteyngar seja muito mais do só mais um livro na
estante, mas como eu disse no inicio, o que me fez encontrar esse
livro é o fato de que ele reflete com intensidade o momento atual de
nosso mundo e isso o torna extremamente relevante para todos, que
assim como eu, enxergam nuvens negras se aproximando no horizonte.
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