Se o ano de 2016 trouxe algo
de bom no meio de tanta tragédia, foi um novo foco às produções
de ficção científica. Com a apresentação da terceira temporada
de "Black Mirror" e a estréia de "West World"
encabeçando o seguimento, o Sci-fi conquistou mais e mais fãs dia
após dia nesse último ano; Porém, o término das temporadas dessas
duas séries, deixou um vazio na vida de quem vinha se acostumando
aos conceitos e surpresas apresentados por elas. No entanto, longe
dos grupos de debates sobre as teorias que envolvem essas séries tão
cultuadas, existem outras obras, de qualidade semelhante, mas bem
menos vistas, que podem agradar e surpreender muita gente, além de
ocupar aquele espaço vago que as histórias contadas por Charlie
Brooker e Jonathan Nolan deixaram no inicio desse ano.
Uma dessas obras, que me
prendeu no sofá, sem piscar durante os dezesseis episódios das suas
duas temporadas, me fazendo sair por aí a indicando aos quatro
ventos logo depois, foi uma série inglesa que, tal qual as duas
séries citadas acima, também fala sobre tecnologia e tomada de
consciência pelas máquinas, mas conseguindo ir muito além, ao
abordar as consequências na sociedade ao ocorrer o surgimento dessas
consciências e, de quebra, fazer um paralelo com diversas situações
enfrentadas no mundo atual. Trata-se de "Humans", série
inglesa criada por Sam Vincent e Jonathan Brackley, exibida pela
Channel 4 e AMC, baseada na série Sueca "Real Humans", que
parece que ninguém assiste, mas que merece e DEVE ser vista por
todo mundo já.
"Humans" se passa em
uma realidade paralela, onde a utilização de androides
(sintéticos) para serviços domésticos e de ajuda pessoal, se
tornou usual. Nesse universo encontramos Joe, um pai de três filhos
que se vê perdido entre as tarefas de casa e do emprego, quando sua
esposa Laura se ausenta a trabalho. Pressionado pelas tarefas, Joe
decide comprar um sintético para ajuda-lo a organizar sua vida
enquanto a esposa não retorna, o que ele não sabe é que a
sintética batizada de Anitta por sua filha mais nova, se chama na
verdade Mia e pertence a um pequeno grupo de androides que poderão
revolucionar o mundo, por serem as primeiras máquinas conscientes e
que, tanto Joe, quanto sua família, irão testemunhar da primeira
fila todas as transformações que a revelação da existência de
maquinas pensantes causará na sociedade.
OK!! Minha sinopse não ajuda
a cativar ninguém a ver a série, mas se eu posso me desculpar pela
falta de inspiração ao descrever o contexto da série, é dizendo
que nem se eu escrevesse um post inteiro falando apenas do que se
trata "Humans" eu conseguiria falar sobre tudo que a série
questiona e aborda, então o mais interessante, acredito, será eu
falar sobre todos os pormenores que chamaram a atenção dentro da
história.
Para começar, a trama traz
uma questão que vem se tornando cada vez mais presente nas produções
cinematográficas, que é a singularidade, aquele momento em que as
máquinas tomarão consciência de que são indivíduos ou entidades,
com pontos de vista, ideias e personalidade, fato que é destaque não
só em "Westworld", mas no ótimo "Ex-machina",
entre diversas outras produções, mas na história de "Humans"
, não é o ponto alto da trama, mas sim o ponto de partida para toda
a discussão que surge na série. Assim, em um mundo onde os
androides estão presentes em todo lugar, mas são tratados como
coisas, o surgimento de alguns que pensem, questionem e ajam como
humanos, traz a dúvida de se o fato os torna humanos? Se eles devem
ter direitos e deveres como tais? Quem fala por eles e quais os
limites que esses sintéticos devem ter? Essas são algumas de muitas
as perguntas que a trama já nos traz de início e que norteiam a
história em meio a uma enxurrada de acontecimentos e diversos
personagens interessantes.
Quanto aos personagens, a
produção consegue entregar indivíduos que são a representação de
todo tipo de personalidade e a faceta de um argumento em si, e não
só isso, como apresentar um elenco diverso e bem explorado, que
consegue mostrar desde os traços étnicos dos androides a revolução
que eles representam. Essa diversidade étnica que aparece nos
sintéticos conscientes do inicio da série (onde temos uma asiática,
dois negros e uma loira), parece, além de sinalizar a ideia de
diversidade humana, traçar um paralelo mesmo com a questão dos
imigrantes ao colocar como personagens centrais da discussão, atores
com traços não tão comuns dentro das produções clássicas
inglesas, essa fato ainda é reforçado, quando somos apresentados
aos problemas sociais decorrentes da utilização desses androides,
como a substituição de pessoas por máquinas em postos de trabalho,
não só pela sua melhor eficiência, mas como pelo seu menor custo,
o que cria grupos de resistência que se intitulam "humanos de
verdade" e buscam a reversão do status social daquele universo,
não muito diferente dos grupos que apontam para a entrada de pessoas
não nascidas em determinados centros, como o fator responsável por
todos problemas sociais existentes em uma localidade.
Esse problema social criado
pela existência dos sintéticos nesse universo, vai além da tomada
dos empregos. A própria evolução dessas máquinas, causa temor
aos jovens, que se frustram ao perceberem que pode não haver
expectativa de um futuro bem sucedido dentro de qualquer área de
interesse, ao perceberem que em alguns anos, os androides estarão
tão aperfeiçoados, que poderão efetuar qualquer função e com um
desempenho maior do que qualquer humano; somando-se a esse problema
do primeiro arco, a segunda temporada ainda nos apresenta um grupo de
adolescentes que, em resposta a frustração dos outros, se veste e
age como os sintéticos, pois perceberam a vantagem que as máquinas
tem ao não se frustrarem, sentirem medo, não precisarem tomar
decisões sozinhas ou se questionarem; de encontro a isso, temos as
máquinas conscientes buscando desfrutarem seus direitos de
"pessoas", assim como seus deveres e até mesmo pensando em
suicídio frente ao amargo de uma vida social com decisões e
dúvidas; tais questões surgem em seguidos debates que tornam
"Humans" ainda mais complexa e reflexiva do que a grande
maioria das séries atuais.
Complementando esses problemas
sociais mais amplos, "Humans" aborda questões ainda mais
pessoais, como o caso da utilização dos sintéticos para satisfação
sexual, o que nos é apresentado como algo aceitável, ao nos mostrar
os androides como máquinas, mas que nos faz questionar se aquilo
tudo é correto quando nos faz ver toda situação de humilhação
através dos olhos de duas personagens sintéticas obrigadas a
desempenhar esse papel, mesmo tendo consciência e ego idênticos aos
dos humanos. Em resposta a isso, temos humanos que são trocados por
androides, pelo fato desses últimos serem programados para
satisfazerem todos seus desejos e dar a eles toda atenção possível
sem distrações.
Além de tudo, a série ainda
traz muitas referências a filosofia e aos clássicos de ficção
científica, além de menção aos grandes autores do gênero Sci-fi,
como quando é falado que o suposto assassinato executado por um
sintético, fere as leis Asimov, sem contar que toda linha que a
produção segue, remete ao questionamento que foi, em parte, base
para a criação de todo universo de Philip K. Dick, de que se algo
pensa e age como um humano, é humano? O que nos torna humanos? Em
uma adaptação mais simples do "penso, logo existo" de
Descartes, que, a propósito, aparece em um poster ao fundo na
série, e não apenas uma vez.
Mas nem tudo é exatamente
perfeito na série e algumas coisas me desagradaram. A principal, foi
a substituição do antagonista da primeira temporada, que surge na
segunda apenas para vender seus segredos ao novo "vilão",
e desaparece, como se todas as situações que o levaram até ali, e
as quais eram de seu interesse pessoal, simplesmente tivessem deixado
de ser importantes para ele e isso eu achei uma grande falha de
constância no roteiro. A segunda coisa é o desaparecimento de
alguns personagens e o sub-aproveitamento de outros, como no caso do
androide Fred ( um dos sintéticos conscientes originais), que mal
aparece na primeira temporada e some na segunda e o sintético
ultrapassado Odi, que tem todo um potencial e razão para estar
dentro de um arco na primeira temporada, nos faz questionar muitas
coisas na segunda e deixa a série (aparentemente) sem nos apresentar
as respostas e ações que poderia dar. Essas duas questões me
incomodaram, mas como nada na vida é perfeito, seguimos aproveitando
o que há de bom e deixando de lado o que fica mal explicado.
Apesar de um detalhe ou outro,
"Humans" ficou marcado para mim, como o grande achado do
início desse ano (mesmo a série ter estreado em 2015). Sua trama
complexa e os paralelos que podemos traçar através de sua
história, são um elemento poderoso e que nos leva a reflexão, não
só ao pensar em uma sociedade como a mostrada na trama de Sam
Vincent e Jonathan Brackley, como nas situações presentes em nosso
cotidiano. Serve para, além de saciar a saudade de séries mais
prestigiadas, enriquecer quem é fã de ficção científica de
conceitos e questionamentos, nem sempre bem abordados nessas outras
séries. Espero que todos assistam e se divirtam bastante, enquanto a
mim, fico na torcida que a terceira temporada chegue logo, fica a
dica.
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