Em 2008 o
cinema sueco trazia ao mundo uma grande surpresa ao reviver com
dignidade a imagem do vampiro; se tratava de “Deixa ela entrar”
do diretor Tomas Alfredson. O filme, que conquistou o cenário
mundial no ano seguinte, rapidamente se tornou um clássico,
recebendo uma refilmagem americana em 2010 com a Eterna
Hit-gril, Chloë
Grace Moretz , no papel da vampira
ELI e dirigido por Matt Reeves que viria a dirigir o elogiadíssimo
“Plane dos macacos: o confronto” em 2014. Eu, quando assisti ao
filme o achei ótimo, mas na minha infinita ignorância sempre achei
que ele era fruto de um roteiro original, no melhor estilo cinema
autoral europeu, mas ao pesquisar um pouco mais sobre a obra após
ouvir o excelente Cinecast Cult ( do site os cinéfilos) sobre o
original sueco, acabei por descobrir que o roteiro é adaptado do
livro homônimo do escritor John Ajvide Lindqvist e que a Globo livros
o havia lançado no Brasil em 2012;
Então eu não resisti, comprei o livro e o devorei.
A
história central do livro não tem nada de diferente dos filmes, ela
se foca em Oskar e Eli; Oskar é um menino solitário dos subúrbios
de Estocomo , que vive com a mãe, que é separada do pai alcoólatra ,
e divide seu tempo entre casa, onde está sempre só e a escola onde
sofre bullyng dos colegas; Eli por sua vez é uma menina misteriosa
que se muda, junto com seu “pai” para o apartamento vizinho ao de
Oskar e acaba firmando uma amizade com ele, o fazendo refletir sobre
autoestima, amor, solidão, sexualidade, medo e violência; enquanto
essa amizade vai crescendo, estranhos assassinatos vão sendo
realizados nas proximidade de Blackeberg, bairro onde os
protagonistas moram, criando tensão e medo entre os habitantes, é
entre esse acontecimentos que Oskar descobre que Eli é uma vampira,
o que muda para sempre sua vida e sua forma de ver o mundo e a si
mesmo. A trama central já é bem rica pelos temas que aborda e pela
maneira como expõem esses assuntos , de forma que utilizaram apenas
esse arco para roteirizar os filmes; no entanto, algo que não existe
nos filmes é o aprofundamento das outras pessoas afetadas pela
situação e as ações e reações que os protagonistas precisam
tomar para sobreviver naquela sociedade, o que ao meu ver é muito
bem conduzido pelo escritor, pois o livro tem diversos personagens
que foram diminuidos ou excluídos nos filmes e que são
importantíssimos para que possamos entender o mundo onde Oskar vive
e aceitar suas decisões.
Já
no inicio do livro, Quase que junto com os personagens centrais somos
apresentados a Hakan, que Oskar imagina ser o pai de sua nova amiga,
mas que na verdade é seu ajudante; um pedófilo apaixonado por Eli e
que é responsável de conseguir sangue para a sua amada de modo que esta
não precise se expor. Nos filmes, a relação deles é distante e
muitas vezes Eli o despreza como se ele já não fosse mais útil, já
no livro há uma grande cumplicidade entre os dois, de modo que a
Vampira não se zanga quando seu ajudante diz que não quer mais
matar e vai a busca de sangue ela mesma, recomendando que Hakan
descanse e esqueça um pouco a vida que eles levam; A história de
Hakan vai sendo exposta lentamente, partindo de um momento atual onde
ele caça e executa vítimas para retirar o sangue e, sua vida
anterior, onde vemos seus atos de pedófilo; também somos
apresentados a suas frustrações e arrependimentos e surpreendidos
com momentos onde ele tenta realizar gestos genuínos de bondade,
mesmo quando sua consciência grita que não há redenção.
Diferente dos filmes o “fim” de Hakan ainda abre espaço para
mais situações assustadoras e converge com o final de outros
personagens em momentos aterrorizantes que ficariam muito legais no
cinema.
Há
também o grupo do Bar Chinês, que não aparece por completo nos
filmes; esse grupo é composto por Joke, Gösta, Larry, Morgan, Lake
e Virginia ( no filme o grupo se resume aos amantes Lake e
Virginia), esse grupo é a representação da solidão humana e de
um underground que eu não sabia que existia na suécia; Morgam faz
bicos para viver e está sempre de porre, Joke trabalha em um ferro
velho as vezes, Gösta vive em um fétido apartamento com vinte e
oito gatos, Larry é aposentado por doença (qual ninguém sabe),
Lake vive do dinheiro da venda da casa da família e dos selos raros
que herdou do pai e Virginia é uma solitária cinquentona que bebe
para esquecer as frustrações de sua vida e emprego medíocres, todos
eles são descritos sempre usando roupas gastas e surradas quando não
sujas, cambaleando pela noite, com o olhar vazio e o rosto e o corpo
marcados pela bebida; deles, apenas Virginia tem uma filha e um neto,
os demais só possuem uns aos outros, mas mesmo assim, não se pode
dizer que eles são companheiros, na verdade é um grupo de várias
solidões juntas. Esse grupo é responsabilizado por nos mostrar duas
questões ( além de exporem uma sociedade Sueca desconhecida), as
consequências que um crime, como o assassinato, causam no circulo
social da vítima e as questões que se apresentam quando alguém é
contaminado por um vampiro. O primeiro caso surge quando Joke, um dos
bêbedos do grupo, é vítima de Eli, que sai para caçar após a
resposta negativa de seu ajudante; o desaparecimento de Joke causa um
forte impacto no grupo a que ele pertencia, especialmente em seu
melhor amigo, Lake, que se desespera e se torna obcecado em descobrir
o que aconteceu ao amigo; motivo que o leva a descontar, dias mais
tarde, suas frustrações e raiva em Virgínia, sua amante, que acaba
sendo atacada por Eli quando a fome a havia dominado. A partir daí
acompanhamos todas as etapas da transformação de Virgínia, sua
alergia a luz solar, sua fome e a descoberta pelo prazer de beber
sangue (que é muito bem ilustrado pelo escritor), uma pseudo
explicação científica que informa o porque o coração é o ponto
franco dos vampiros, passando por delírios onde a infectada se
imagina sugando o sangue de seu próprio neto. Devo dizer que os
capítulos onde , após ser atacada pelos gatos de Gösta (que ela
visitou para matar, mas que foi frustrada pela presença de Lake no
lugar), onde Lake está com ela no hospital e lhe conta o sonho que
tinha de morar no interior com ela e comprar uma casa para sua filha,
tirando lágrimas dos olhos da vampirizada ,são muito bonitos e
emocionantes, embora o final seja tão aterrador quanto o filme,
quando a manhã chega e a enfermeira abre as janela para o sol
entrar.
o sol anda forte não?! |
Também
temos Tommy, sua mãe Yvonne e seu futuro padrasto , o policial
Staffan. Tommy é um garoto mais velho que mora em um apartamento
vizinho ao de Oskar, ele é uma das poucas pessoas que parecem
respeitar o menino, dando-lhe conselhos e conversando sobre o dia a
dia, ele passa grande parte do tempo no porão do prédio com seus
amigos, cheirando cola e pratica pequenos furtos para conseguir
dinheiro; Yvonne é uma viuva perdida que só é relatada fumando,
sem saber como tratar com o filho ou observando seu namorado com
olhos alegres; Staffan por sua vez é um dos policiais responsáveis
por investigar os assassinatos que vem acontecendo na região de
Blackeberg, campeão de tiro e cristão devoto, é através de seus
relatos que somos apresentados a como a sociedade lida com a presença
de um assassino em série em seu meio. Os motivos da rebeldia de
Tommy e a consequência disso na relação de sua mãe com staffan são
lentamente desenvolvidas e divertidamente trabalhadas. Esses
personagens foram cortados dos filmes, talvez para dar um ar ainda
mais solitário ao protagonista, mas que no livro são importantes
pois são uma especie de espelho da vida que Oskar poderia ter
também, deixando claro que ele não teria quase nenhuma esperança
caso essa fosse sua situação.
Um
outro arco, que embora pequeno é muito bom e eu não esperava, é o
de Johnny, o garoto que faz Bulling em Oskar. O autor o apresenta
como o segundo filho de uma família de seis irmão, sendo apenas ele
e Jimmy, seu irmão mais velho, filhos do mesmo pai. O capitulo único
onde o foco é Johnny, apresenta uma conversa entre ele e o irmão
mais velho onde o assunto é o pai que trabalha em uma plataforma de
petróleo na Noruega, em poucas linhas , embora não justifique o modo
como o personagem age, acabamos por entende-lo e o aceitar, a forma
como o autor o humaniza, relatando a casa bagunçada, a mãe
alcoólatra e sempre grávida, a falta de esperança e base, faz com
que tenhamos mais pena do que raiva e nos coloca um nó na garganta
quando o fim desses personagens é anunciado, ao mesmo tempo em que
lá no fundo dizemos “Bem feito!”. É brilhante!
Dois
outros personagens se impõem na trama, o clima do inverno Sueco e a
solidão de seus personagens. No livro o clima tem um papel
importante, a ideia do branco do gelo que representa a pureza e ao
mesmo tempo a frieza; O clima também tem destaque nas partes tensas
como quando um assassinato vai acontecer, o autor frisa o
derretimento do gelo e a lama negra que corre pelas ruas, fazendo com
que carros derrapem e armadilhas para os desavisados se formem. A
solidão, como já falei, está em todos lugares do livro, no
protagonista que sem amigos, se sente só mesmo que acompanhado da
mãe, da Vampira que caminha entre as pessoas durantes séculos sem
conhecer o que é a amizade verdadeira, Johnny que usa o bulling como
armadura e que sente a falta de um pai e que vê no estilo de vida do
irmão o único elo com algo que ele reconhece como verdadeiro, Hakan
que ciente de seus defeitos vaga sozinho e triste reconhecendo seus
crimes, o grupo do Bar chinês e suas desesperanças, as mulheres,
sempre retratadas como submissas às vidas que lhe foram impostas,
todos personagens estão sozinhos por mais que estejam acompanhados,
analisando bem o livro, penso que a história é muito mais sobre a
solidão do que uma simples história de vampiro.
Sempre
fico feliz quando gosto de um filme e descubro que o livro onde foi
baseado é ainda melhor que ele e “Deixa ela entrar” é um
exemplo disso. O filme é muito bom, mas o livro o supera quando
apresenta os personagens periféricos citados e as consequências da
situação em suas vidas, além de levantar diversas outras questões,
como a Origem de Eli, que é ignorada nos filmes e que nos é
mostrada através de um sensacional elo psíquico que se forma entre
ela e Oskar quando eles se beijam, Oskar é colocado dentro da mente
de Eli e vê, como se fosse ela, seu passado e como aconteceu sua
contaminação, de forma que descobrimos que Eli na verdade é
Elias!isso mesmo, um menino!! Elias foi emasculado e contaminado para
saciar a sede de sanguem do senhor feudal onde sua família era
serva, isso a mais de duzentos e vinte anos.... o que responde a uma
pergunta que a (ou o) vampira(o) faz a Oskar quando a amizade de
ambos começa a crescer : “se eu não fosse uma menina, você
gostaria de mim?”... e a resposta de Oskar se confirma apesar das
dúvidas que a revelação perturbadora levantam em sua cabeça de
menino de doze anos..., “Sim!”, o que também é claramente
sentido por Eli , algo que nos filmes parece ser um sentimento
simulado na busca de um novo ajudante.
Outra
questão é o Bulling, nos filmes a situação vivida por Oskar pode
ser caracterizada como terro psicológico, mas no livro o medo é
devido a uma verdadeira possibilidade de dor física acompanhada pela
certeza de humilhação constante, Oskar é perseguido a todo
momento, o obrigam a imitar um porco, o surram, sujam e prejudicam de
toda maneira, conseguimos sentir através das linhas a falta de força
e esperança que o personagem apresenta frente a tudo e acompanhamos
a alegria quando ele consegue reagir e começa a se tornar alguém
diferente, o final do livro me arrancou um sorriso quando fala o que
acontece com os covardes irmãos Johnny e Jimmy na piscina de
treinamento da escola.
Por
tuuuuuuuuuuudo isso, considerei “Deixe ela entrar” um dos
melhores livros que li nos últimos anos e o melhor romance sueco que
eu já li na vida (só li ele), um livro de fantasia que não ofende
a inteligência de ninguém mas que ao mesmo tempo consegue ser
divertido e empolgante, consegue explorar bem seus personagens
expondo suas motivações, sentimentos e vida; mostra uma lado
diferente do comumente apresentado da Suécia, traz novamente a
dignidade que foi roubada dos vampiros ultimamente, apresentando
aquele quê de violência e revanche que deixa um gostinho de sangue
na boca, sem trocadilho.
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