Se não enxergarmos o que é tido
como diferente presente em todas as áreas da sociedade o encararemos como um
erro, onde apenas a bolha onde vivemos será percebida por nós como verdade
absoluta; por isso eu digo: Representatividade é tudo!
Mas não é a simples presença física de
pessoas de diferentes cores, opções sexuais ou religião que garante o rompimento
da bolha onde nos incluímos, mas a possibilidade de se criar empatia a ponto de
nos reconhecermos nas pessoas de aparência e opções diferentes de nós mesmos e
nisso, a cultura como um todo tem um papel essencial, mas em especial o cinema
e a literatura em suas facetas tidas como pop. Tudo isso talvez seja uma verdade quase intuitiva, mas que ficou
mais clara para mim, quando me deparei com uma obra de sci-fi clássica, que
utilizando de clichês de ficção científica e fantasia, me entregou uma mensagem
poderosa sobre os males que o preconceito cristalizou em nossa sociedade, em
uma trama fruto da mente de uma pessoa que viveu muitos desses males.
Pois hoje falarei (muito por cima) dessa
obra, ou melhor, desse livro que se enquadra perfeitamente no seleto grupo dos
“rompedores de bolha” e que me conquistou desde seu prólogo. Trata-se de “Kindred
- Laços de Sangue”, um clássico da escritora afro-americana Octavia E. Bluter,
que depois de quase quarenta anos de seu lançamento original, finalmente chega
o Brasil pela editora Morro branco, me prendendo em suas páginas não só pela
sua mensagem dura mas necessária, quanto por sua escrita refinada e ágil.
Esse livro me causou inúmeras sensações, a
maior foi a da descoberta de Octavia E. Bluter e todo seu talento. A autora,
não vulgarmente chamada de A grande dama da ficção científica, realmente me
impressionou com sua forma de escrever limpa e pé no chão (e em um livro de
sci-fi!), conseguindo transmitir não só toda a dor do período escravagista de
maneira sutil, como a própria aflição de seus personagens negros do século XIX,
que transitam no livro como não pessoas, posses de outros e fadados a passar o
resto de seus dias contendo seus sentimentos e indignações; mas também, nos
entregado na sub-trama, a cicatriz social que a escravidão deixou ao apresentar no tempo atual
(1976) uma mulher negra casada com um
homem branco (Dana e Kevin), que sofrem o desprezo de suas famílias devido a
esse casamento, ainda nada comum nos EUA dos anos mil novecentos e setenta,
indicando, sem precisar escrever nada que aprofunde a situação, a marca de um
racismo, mais velado do que explicito, que continua presente até os dias de hoje;
sem falar da maneira totalmente realista que a autora descreve o relacionamento
e rotina do casal, nos tornando cúmplice de seus segredos e testemunha de seus
sentimentos.
A leitura também me fez refletir quanto a
pouca quantidade de autores não-brancos e não-masculinos que eu posso dizer que
li e o que eu perdi com isso. Fora os clássicos como Machado de Assis ou
Alexandre Dumas e “Batle Royale” de Kouachum Takami, quase todos livros da
minha lista são de Europeus ou Euro-americanos e no que se trata de mulheres
não é muito diferente, mulheres negras então, não havia nenhuma. Octavia E.
Bluter veio para mudar isso ao se apresentar para mim, como um desses autores
que quando terminamos de ler uma de suas obras, sentimos vontade de ler todas,
nos induzindo à representatividade através do puro talento.
A história da autora e a consciência da
sociedade onde vivia e que lembra um pouco como enxergo a nossa, sem contar o
fato de, pela primeira vez, tive a oportunidade de ter contato com uma obra de
ficção científica escrita por uma pessoa da mesma etnia que eu, realmente me
tocou, pois como disse no início, representatividade é tudo! Mas esse fato
sobre “Kindred” que é importante para mim e para poucos, se encontra além do
livro, dentro dele há uma história de drama e aventura, desenvolvida de maneira
magistral que fala sobre como somos adestrados para aceitar os abusos e não
perceber muitos de nossos próprios privilégios. Isso acontece através da
relação de Dana e Rufus, a primeira uma mulher negra educada e culta do século
XX, se vendo exposta a todo tipo de violência do período da escravidão e que
vai se quebrando frente a esse novo mundo; o outro, uma figura do século XIX,
que, conforme Dana vai retornando no tempo e acompanhando seu crescimento, vai
se corrompendo e se mostrando cada vez mais consciente de seu papel.
Octavia E. Butler (1947-2006) |
A Autora ainda inclui, em uma das regressões
no tempo, a presença do marido da protagonista, que serve como “olhos brancos
bem intencionados”, que enxergam as barbaridades da época e se indigna, mas,
por não possuir a mesma ligação com a situação que a protagonista, acredita que
as coisas poderiam ser ainda pior. De forma genial, Kevin está lá para
representar os brancos que são despidos de preconceito (e ele faz isso se pondo
em risco muitas vezes), mas não possuem a mesma história de vida de quem sofreu
o preconceito na pele; algo tão comum como o próprio preconceito e que, no
livro, deixa profundas cicatrizes ao personagem quando este volta para seu
tempo natal.
Eu poderia falar durante páginas e mais páginas sobre “Kindred”, mas preferi não me aprofundar mais para não acabar com a experiência de ninguém, o que posso dizer é que este é um livro essencial para quem
é, além de fã de fantasia e ficção científica, amante da literatura. Uma obra
de escrita ágil, personagens fortes e marcantes, questões amplamente relevantes
e que ainda hoje são debatidas. Fruto de uma mente a frente de seu tempo, que
usando os conceitos Pop levou a todos um retrato da ferida que legitimou o
preconceito racial nos EUA (e no mundo), assim como, por meio de seus
personagens, mostra a facilidade de se quebrar frente ao poder, ou não enxergar
seus privilégios. Um livro que me fez sentir mais do que satisfeito, como me presenteou
com outro autor para ler toda obra; uma mulher que, depois de 424 páginas,
posso dizer que me representa na ficção científica e como bem se sabe,
representatividade é tudo!