No decorrer da minha vida de
leitor, alguns livros ficaram marcados nas minhas lembranças quase
como um amigo que viveu uma história única à meu lado e que por
vezes tenho vontade de visitar para conversar sobre aqueles bons
momentos. Um desses livros, é o fantástico "O Homem duplo",
de Philip K. Dick, que tinha lido a quase dez anos e que tive o
prazer de reler recentemente, me deixando novamente maravilhado pela
história fantástica, de um mundo totalmente monitorado e tomado
pelas drogas, mas onde Dick consegue com sua genialidade, em sua obra
mais atual e madura, dar vida a seus personagens de uma maneira
original e extremamente humana.
Capa da edição da Rocco |
"O Homem duplo",
como citado acima, se passa em um futuro onde o tráfico de drogas
venceu e grande parte da população é formada por traficantes e
usuários; a polícia monitora a todos que quiser e seus agentes
trabalham em tamanho sigilo, que nem ao menos se conhecem,
utilizando, quando presentes na delegacia, uma roupa holográfica que
não permite suas identificações. Nesse mundo, somos apresentados
a Fred um policial disfarçado e viciado na perigosa substância D,
que é infiltrado, com o nome de Bob Arctor, entre um grupo de
drogados e acaba com a missão de investigar a si mesmo. Carregando
o peso de seus papéis contraditórios e vítima de seu vício e
solidão, Fred/Bob Arctor passa a ter seguidas alucinações e
dúvidas sobre sua vida, vindo a esquecer se ele é na verdade o
traficante Bob, que deve ser vigiado, ou o policial Fred que deve
prende-lo.
Não sei dizer se esse é o
melhor livro do autor, afinal Dick escreveu mais de cinquenta obras e
eu não tive o prazer de ler mais que dez delas; mas, dos que eu li,
essa parece ser sua história mais madura e sensível. O motivo disso
parece passar pelo fato que, assim como o protagonista, Philip
K.Dick, também viveu experiências com drogas e, conforme a
homenagem que faz ao final do livro, perdeu diversos amigos em
decorrência do vício, isso faz com que o livro pareça ser escrito
com muito mais sentimento e carinho que as demais obras do autor,
onde a especulação e a sociedade parecem tomar a frente dos
indivíduos. Em "O homem duplo" os personagens se destacam
muito mais que o mundo que os cerca, sendo que somos informados sobre
essa realidade, do mesmo modo que os superiores de Fred/Bob Arctor,
através dos olhos de outras pessoas e essa maneira de nos mostrar o
universo onde a história se desenrola, retira da trama todo
maniqueísmo possível, fazendo com que não sobre espaço para
vítimas ou algozes, apenas para pessoas, que assim como o
protagonista, vivem múltiplos papéis, com todos seus erros, dúvidas
e acertos, e, essa complexabilidade, transforma o livro em algo único
e especial.
Mas mesmo que a sociedade onde
a história acontece fique relegada ao plano de fundo da trama,
conseguimos sentir a opressão e o caos controlado que dela emana,
podendo classifica-la como uma forma de distopia. Nesse mundo de "O
Homem duplo", onde as ruas são tomadas de traficantes e
usuários, nem os próprios agentes estão imunes a vigilância
intensa e a corrupção, acabando por viverem muito mais na zona
marginal onde foram infiltrados, e se acostumando com essa realidade,
do que tendo acesso aos benefícios dos que pagam o seus salários e
recompensas, que é o grupo apelidado de "caretas". Esse
grupo, que é composto pelas pessoas mais abastadas (ou menos
ferradas), vive distante das realidades das ruas, ainda seguindo o
modelo americano de vida e usufruindo de todas as garantias que sua
posição permite. Essa divisão da sociedade, tendo os caretas como
grupo dominante, é apresentada de maneira sutil pelo autor, mas
marca a cisão social que coloca um pequeno grupo sobre o restante da
população e isso fica exemplificado quando o protagonista se vê
obrigado, já no início do livro, a palestrar (utilizando seu traje
holográfico) para um grupo desses indivíduos em um club fechado e
contar para eles o que vê diariamente nas rua, fato que
inimaginável para eles; assim como quando, conversando entre si, os
amigos de Bob especulam o que existe dentro de um shopping, um lugar
onde pessoas do tipo deles jamais entrariam; isso vem a se somar ao
fato de que na história, os caretas são sempre mencionados e nunca
abordados ou presentes diretamente na trama, tudo que vemos se passa
nas ruas, longe da elite, que fica inatingível para aqueles para os
quais sobrou apenas o vício e o descarte como alternativa.
poster do filme |
No entanto, tanto os
personagens marcantes, quanto o universo onde eles existem, não
passariam apenas de uma boa ideia, caso não fosse a maneira
primorosa como o autor resolveu contar a história. Munido de uma
narrativa que oscila entre o trágico e o cômico, Philip K. Dick,
consegue ir além da sensação de estranheza e reflexão de seus
textos, mas sem fugir da base de sua obra, construída em cima do "O
que é real?", o que nunca foi tão bem abordado quanto nesse
livro, onde nem mesmo o protagonista sabe quem realmente é. E essa
confusão na mente de Bob Actor vai surgindo de forma quase
imperceptível com a inclusão de frases em alemão no meio do texto,
que são a manifestação dos sintomas do abuso de drogas no
personagem, em que Dick utiliza trechos de "Fausto" de
Goethe, uma história onde o herói busca enganar o diabo, para
descrever, tanto o início da confusão mental do protagonista, como
para indicar suas intenções e questionamentos subconscientes, pois
afinal quem seria o diabo de Arctor? Os drogados e traficantes com
quem ele convive? A sociedade policial que ele representa? Ou ele
mesmo que transita entre esses dois mundos?
O livro ainda é repleto
diálogos brilhantes e muito engraçados por parte dos amigos de Bob
Arctor, que assim como os pequenos e fantásticos contos, que
aparecem como "trips" devido ao uso de drogas pelos
personagens, dão o tom de insanidade da trama e coroam o talento do
autor. Dentre esses diálogos e contos, o que é mais marcante para
mim é o da tentativa de suicídio de Charles Freck, onde desiludido
com o mundo, um dos amigos de Arctor resolve tomar uma overdose
regada a vinho barato e transformar seu sacrifício em um ato de
protesto. Assim ele planeja ser encontrado em sua cama com um
exemplar de "A nascente" de Ayn Rand, para demonstrar que
era um super-homem incompreendido pelas massas e, uma carta de
reclamação devido ao cancelamento de seu cartão de crédito, para
culpar o sistema por sua morte; mas no último minuto ele resolve
tomar a overdose com um vinho bom, compra um mondavi cabernet
sauvignon e toma as pílulas com
o vinho, fica esperando deitado e percebe depois que não se tratavam
de barbitúricos, mas um psicodélico vagabundo, minutos depois ele vê
ao lado de sua cama uma criatura extra dimensional cheia de olhos
trazendo consigo um pergaminho com todos seus pecados, em
sua trip, mil anos depois a criatura ainda lia seus pecados do jardim
de infância, dez mil anos depois os da sexta série, Freck olha
para criatura, meditando
sobre o que estava acontecendo e pensa..."Pelo
menos bebi vinho do bom!".
Freck em seu "Suicídio" no filme de 2006 |
Aliás, esse trecho de "O
homem duplo" citado acima, que exemplifica o humor e talento do
autor, foi o que me levou a procurar esse livro a dez anos atrás.
Tudo devido a adaptação da história para o cinema em 2006,
roteirizada e dirigida por Richard Linklater (diretor de Escola de
Rock e Boyhood) onde a cena de Charles Freck é apresentada de forma
idêntica a no livro e ainda com a vantagem de ser narrada com uma
gravação do próprio Philip K. Dick, que quando assisti e me deixou
boquiaberto. O filme, que é a adaptação mais fiel dentre as
inúmeras histórias do autor que foram levadas para o cinema, contou
com um elenco de peso, que além de Keanu Reeves, como Bob
Arctor/Fred, tinha Robert Downey Jr, como Jim Barris, Woody
Harrelson, como Luckman e Winona Ryder, como Donna e, se tornou
famoso, ao utilizar uma técnica de pós produção que aplica uma
pintura ao filme, dando a ele a aparência de animação, fato que o
diretor afirmou ter inserido para causar uma sensação, a quem
assistisse ao filme, semelhante a de como um usuário de LSD percebe
o mundo durante uma viagem de drogas.
Capa da edição da aleph |
Assim como o sua adaptação
cinematográfica, o livo, apresenta muito pouca tecnologia futurista
envolvida na trama, tendo em vista que é uma história de ficção
científica e escrita por PKD, o mestre em criar aparelhos malucos
com nomes estranhos. Claro que ainda existem os "Scanners em
cubo 3D" e os "Cefscópios", mas esses equipamentos
estão ali só para lembrar que a trama se passa no futuro e, a
decisão de deixar mais essa questão como pano de fundo, contribui
para a maturidade do livro, que citei no inicio do texto e acaba por
coroar o autor, que tanto se empenhou em imaginar o futuro, com a
visão de futuro bem mais próxima da real, do que em qualquer outro
de seus livros e isso acontece justamente na história onde ele
decide olhar mais para trás em sua própria vida, do que pensar
trinta anos na frente para a sociedade, o que torna "O homem
duplo" sua obra, dentro do possível, mais pé no chão.
"O Homem duplo" de
Philip K. Dick passou novamente pela minha vida como um amigo que
mora longe, mas que com quem sei que sempre posso contar. Uma
história fantástica, vivida em meio as drogas e repressão, mas que
deixa de lado o coletivo e a especulação futurista e, vai mais a
fundo no indivíduo, abordando a ignorância, o medo, a solidão e
até o vício como conceitos que nos tornam humanos. O livro mais
maduro e pé no chão desse grande nome da ficção científica e meu
escritor preferido (como eu não canso de lembrar) e leitura
obrigatória não apenas para quem é fã de PKD ou ficção
científica, mas para quem aprecia uma boa história. A editora ALEPH relançou o livro recentemente com o título "um reflexo na Escuridão" (título bem mais próximo do original em inglês). Minha dica é,
pegue o livro, sente-se em um lugar bacana, abra um bom vinho e deixe
sua mente viajar nessa trip distópica futurista e caso, por algum
motivo, o livro não lhe agradar, relaxe...pelo menos você terá
tomado um vinho do bom!!
Trailer do filme de 2006