Duas semanas de chuva
e, Quando não chove, é tão úmido que verte água do chão e
paredes . Nas ruas, carros da polícia e ambulância passam correndo
com suas sirenes pedindo passagem ,sem contar da névoa que, a noite,
deixa tudo invisível, transformando o trânsito em lentas filas
quilométricas. Foi nesse clima apropriado, gentilmente proporcionado
por minha cidade, que terminei de ler “Androides sonham com ovelhas
elétricas?”, de Philip K. Dick, livro que inspirou o filme “Blade
Runner” do diretor Ridley Scott .O que se pode adiantar é que o
livro não é tão profundo como outras obras do autor como “O
homem do castelo alto” ou “ O homem duplo”, mas apresenta uma
distopia bacana (se é que se pode chamar uma distopia de bacana) que
possui camadas pouco ou não exploradas no filme, que se compreende
melhor ao sermos apresentados através da leitura do que da mídia
visual, do mesmo modo que o roteiro enxuto do filme nos foca em uma
situação e ambiente impares, objetivo demais para um livro , ou
seja, ambos se completam e expandem o universo da obra, de maneira
que comparações e diferenças merecem ser comentados.
LOS ANGELES - 2019 |
O filme “Blade
Runner” é o maior referencial de ficção científica no cinema
para quem nasceu nos anos oitenta. Lançado em vinte e cinco de Junho
de 1982 (No dia em que eu completava um ano!), estrelado por
Harrison Ford , que vinha em uma crescente após o sucesso de
“Indiana jones “ e dirigido por Ridley scott, que ganhou fama com
o sucesso de “Alien”, o filme criou uma grande expectativa
quando anunciado, porém , problemas com atrasos nas filmagens, que
tiraram o projeto das mãos do diretor e colocaram nas mãos dos
produtores e publicidade equivocada, que vendia o filme como um filme
de ação pura, transformaram o filme em um fracasso de bilheteria
.No entanto, o tempo se encarregou de torná-lo cult ,devido aos fãs
que conseguiu nesses trinta e dois anos que se seguiram, tendo em mim
um representante fiel. Assisti a “Blade Runner” pela primeira vez
no supercine, nos anos oitenta pesados,eu devia ter uns sete ou oito
anos e a rede Globo era a única alternativa da época, lembro que
não entendia quase nada da trama, chovia o tempo todo e a música,
em grande parte, era semelhante a um gato no cio; mas os carros
voando e a caçada aos fugitivos chamaram minha atenção de criança
;anos depois, por volta dos vinte anos revisitei o filme, já com uma
carga razoável de cinema e percebi um filme mais denso, que
utilizava do estilo noir para colocar em destaque ideias sobre o
valor da vida e o que é considerado real, assim como os princípios
e motivações do caçador e seus alvos, visão que mantive vendo o
filme novamente a poucos dias, porém ciente de se tratar de uma
distopia e as consequências da situação e ambiente onde estavam
inseridos os personagens e conhecedor dos assuntos recorrentes da
literatura de Dick, como a dúvida quanto a realidade, vida e
escolhas .
Rick Deckard : vamos a caçada |
A trama do filme
conta a história de Rick Deckard, um ex-caçador de recompensa do
departamento de policia de Los Angeles (conhecidos como Blade
Runners) , que é reativado após outro caçador ser vítima de um
atentado por um Nexus-6 ( androides /escravos das colônias
espaciais) durante um teste de identificação ;é lhe dada a missão
de substituir seu colega e informado que se tratam de androides que
se rebelaram e mataram a tripulação de uma nave e fugiram de uma
colônia espacial para a terra, sendo originalmente seis, tendo dois
deles morrido ao tentar invadir a corporação Tirell ( empresa
criadora e fornecedora desse modelo de androide) ,e quatro ainda
vagando pela cidade oferecendo perigo a população. Em sua busca,
Deckard contará com o auxilio do investigador Gaff e de Rachel
Tyrell (uma androide propriedade da corporação que possui as
lembranças da sobrinha do dono da mesma) e daí se desenrola a
história.
O livro tem um cenário
um pouco diferente, mostra um mundo devastado por uma guerra nuclear,
onde a poeira radioativa transformou parte da população em
“especiais”, pessoas afetadas pela radioatividade que tiveram seu
intelecto e capacidades diminuídas e por isso, são proibidos de
migrar para as colônias espaciais e de terem filhos, a propaganda
para essa migração é constante (embora pouco se fale de como as
pessoas vivem nessas colônias),Os animais foram quase extintos o que
deu origem a uma nova religião o Merceanismo, que tem como coluna
dorsal o apresso por toda a vida e obriga, através da pressão
social, que cada ser humano possua e cuide de um animal, sendo essa
posse o simbolo de status e sinônimo de fé na religião que ajudam
os indivíduos a terem destaque e sonharem em crescerem na sociedade
apresentada, do mesmo modo, os androides são doados a cada pessoa
que se voluntariar para colonização espacial, sendo esses androides
(de inteligência e aspectos humanos, embora sem a empatia)
considerados coisas não vivas e tratadas com desdem e repudio na
terra. É nesse ambiente onde vive Deckard, que, no livro, é um
caçador de recompensas ligado a delegacia de San Francisco e que é
incumbido da aposentadoria (eliminação) )do grupo de androides
fugidos de marte(nessa versão), após o caçador responsável (e
considerado melhor) ser ferido em ação; Deckard aceita a tarefa por
passar por um momento difícil, a ovelha que lhe foi dada por seu
sogro (no livro ele é casado com Iran, uma dona de casa) morreu ,
sendo ele obrigado a substituí-la por uma imitação elétrica,o que
significa um desrespeito ao Mercerianismo e repulsa social, sendo a
recompensa pela caçada dos androides o valor necessário para a
aquisição de um animal de verdade.
Rachael Tyrell - existe sentimento? |
No livro, os aspectos social e religioso são muito mais presentes. Socialmente a posse de um animal é tudo que alguém que pensa em galgar degraus sociais precisa, tanto que lojas de animais são citadas como grandes corporações e o catálogo mensal da “Sidney’s”( revista mensal que atualiza o valor de cada animal à venda ) é item obrigatória a todo ser humano, esse desejo pela posse de um animal explicaria o dialogo entre Rachell e Rick , quando o segundo vai até a fundação Tyrell no filme ( fundação Hoden no livro) e lá se encanta com uma coruja, é nos dito ali o motivo daquele encanto, pois os pássaros foram as primeiras vítimas da poeira radioativa sendo esses animais totalmente extintos ( o que impossibilitaria a pomba nos braços de Roy batti em sua cena derradeira no cinema). Porém, vai se percebendo com a leitura que valor da vida fica em segundo plano, um animal é visto e explicado, tal como em nossos dias se fala de um carro ou de uma casa recém-adquiridos ou seja, um simbolo de status e referencia ao grupo, são substituíveis e são feitas trocas e compras dos mesmos, o que mostra o cinismo doa adeptos da religião vigente; além disso, o repudio aos androides, que são criaturas orgânicas engenhadas, mas que são vistos como meras ferramentas e tratados como se possuíssem menor valor do que um animal elétrico, mostra a pouca percepção da ideia de vida e a declinante empatia presentes na sociedade mostrada .
Outra camada que não
é apresentada no filme é a derivada da religião. Presente em
grande parte dos livros de Dick, nesse em especial ela encontra um
papel de destaque através do Merceanismo, religião fundada por
Wilbur Mercer e que além do respeito e cuidado com toda a vida,
busca a unidade da consciência humana através do culto que utiliza
da “caixa de empatia”, equipamento que unifica toda a consciência
humana que a utiliza no mesmo momento em um só ser, a fim de reviver
o caminho de provação vivido pelo profeta até alcançar seu ápice
de consciência. Mercer é a linha que costura a trama, suas ideias
são o que mantem a sociedade terrena viva (embora pouco sã) dando a
possibilidade de “especiais” (ou cabeças de galinha, como são
chamados pejorativamente) e humanos normais compartilharem
experiências e sentimentos entre si, simulando uma interação
social empática que se torna um alívio as pessoas nessa distopia
.Essa experiencia empática é o principal diferenciador entre
humanos e androides, já que os segundos não possuem a capacidade
de se colocar no lugar dos outros e se importarem com o sofrimento e
dor alheia, ou se alegrarem com a presença e realizações de
terceiros, o que lhes limita como sociedade; no livro essa é a razão
para revolta de Roy Batty , que rouba drogas alucinógenas e para
ligação empática para tentar buscar uma união de consciência
entre androides, imitando o culto de Mercer.
Roy Batty - liderança guerreira e religiosa |
O que mais chama a
atenção são as diferenças entre os personagens do livro e do
filme, desde o protagonista até a coadjuvantes periféricos. O Rick
Deckard do filme é citado pelo capitão Briant como o melhor “blade
runner” que já existiu, no entanto no livro ele é apresentado
como um caçador medíocre e que só entra no caso pela
impossibilidade do colega ferido; além dele não ser um solitário e
outsider , é casado com Iran, mulher com quem compartilha de desejos
sociais comuns e busca destaque social através da compra de um
animal verdadeiro, sendo um caçador de recompensas , desde sempre,
ligado a delegacia de San Francisco e que não possui questionamentos
sobre a ética e frieza presentes em seu trabalho. No filme, os
androides contam com a ajuda de J.F Sebastiam, um engenheiro da
corporação tyrell , que sofre de envelhecimento precoce , para
alcançarem o dono da empresa que os construiu, no livro o personagem
que os abriga é J.R Isidore e é através dele que somos
apresentados aos “cabeças de galinha” ou especiais, sendo ele um
especial é motorista de caminhão de uma empresa de conserto de
animais falsos que descobre Pris Stauton (uma dos seis androides
foragidos, pois no livro são oito que fogem e seis são caçados),
morando em um apartamento abandonado e oferece ajuda, entrando em
contato com Roy Batty e sua esposa mais tarde ; muito do que é
mostrado sobre a religião e sobre a personalidade dos androides é
narrado pela ótica desse personagem. Mas que apresenta a maior
diferença, sem dúvida é Roy Batty, enquanto no filme ele é
apresentado como um modelo de combate, o que lhe daria traços de
líder guerreiro, no livro ele está mais para líder
espiritual,sendo dito que era um farmacêutico em marte que buscava a
união mental dos androides e criação de uma sociedade paralela ao
invés de mais vida como é buscado no filme. Por falar nisso, a
busca por mais vida nem ao menos é citada no livro, Rachel Roden
(Rachael Tyrell no filme), comenta com Rick que seu tempo útil é de
quatro anos, mas isso não parece incomodar nem um pouco a ela ou a
qualquer outro androide , talvez devido a falta de empatia até por
eles mesmos. Existem alguns outros personagens e detalhes que o filme
deixa de lado e que não fazem falta, como o fato de Pris Stauton
(vivida por Deryl Hanna no cinema) ser do mesmo modelo de Rachel
hoden, ou seja, ambas são idênticas; ou de Roy Batty ser casado com
outra androide, de nome Imgrad, personagem que foi fundido ao
Personagem de Hanna no cinema.
Penso que “Blade
Runner” é um daqueles filmes que acabam sendo superiores a obra da
qual é adaptada, do mesmo jeito que “O clube da Luta” de David
Fincher, ele corta os excessos e foca na trama principal e
questionamentos que derivam dessa. Mas a superioridade do filme não
torna o livro é ruim, pelo contrário, o livro te insere e expande
um universo que satiriza a nossa realidade, principalmente a
realidade atual; ao simular o interesse das pessoas por símbolos que
na verdade representam status ao invés de preocupação genuína
(como o cuidado com os animais), ao precisar de estímulos externos
para aguentar o cotidiano, como as máquinas que regularizam o ânimo
da pessoa conforme seu desejo, semelhante aos ,cada vez mais usados,
antidepressivos de hoje, ou a caixa de empatia, que busca a interação
social e empática do indivíduo , como as redes sociais simulam;
isso tudo torna o livro interessantíssimo, principalmente ao pensar
que foi escrito nos anos sessenta. No entanto o filme consegue passar
todo o clima de solidão e vazio que são a sombra do livro,
apresentando o mesmo ambiente através da ótica de seus personagens
sobre esse mundo cínico e devastado que se tornou a terra, mas sem
precisar ir tão profundamente nas questões de passado e religião,
o que aconteceu ,aconteceu e fica subentendido o que importa é a
situação atual e as vezes já é demais. Em resumo , “Androides
sonham com ovelhas elétricas?” é um livro obrigatório para quem
é fã de Philip K. Dick e o filme “Blade runner” um marco da
ficção científica que merece ser revisitado, e, caso você não
tem nenhum sentimento pelo filme ou curiosidade pelo livro, não faça
o teste Voight-Kampff ou será descoberto e aposentado.
Você será aposentado |
Eu não acho que o filme superou. Acho tão bom quanto. Acho que eles se complementam. O filme deu vida àquele mundo que PKD imaginou. E o livro tem aspectos sombrios mais interessantes. Naquela realidade, Mercer é Deus. E ele foi desmascarado na televisão no programa do Buster Gente Fina. Eu gosto muito do John Isidore. Ele destoa muito dos personagens do PKD num geral, que geralmente são ambíguos e tem um lado podre bem acentuado; Isidore é genuinamente bom. Gostei do seu texto!
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