Uma
coisa que observo como exigência em uma história de ficção científica ou
fantasia para julga-la como relevante a ponto de perder meu tempo com ela, é
seu paralelo com a nossa realidade. Quando é um filme, por exemplo, não vou
jogar quase duas horas de minha vida no lixo para acompanhar carros que se
transformam em robôs e montam em dinossauros mecânicos para lutar por um cubo
mágico! Mas se a história tiver o mínimo de conexão com os problemas sociais ou
políticos de um período histórico e a trama me encantar, vou assistir até
cansar e serei o primeiro a fazer a campanha a seu favor. E é justamente por
isso que venho hoje publicar o primeiro post de 2018, para recomendar um filme
de fantasia e que fala de solidão, diferença, preconceito e amor; escrito e
dirigido por um cara fenomenal, que aguardei com ansiedade desde seu primeiro
trailer e que superou minhas expectativas, trata-se de: “A forma da água”,
filme do mestre Guillermo del Toro que abriu o ano me deixando quase sem ar.
"Você me tira o fôlego" |
Ambientado
nos E.U.A no meado dos anos sessenta, o filme conta a história de Eliza
Esposito (Sally Hawkins), uma mulher muda e solitária que trabalha como
faxineira em um laboratório do centro de pesquisa aeroespacial, para onde é
levada uma misteriosa criatura anfíbia e humanoide descoberta na Amazônia e que
as autoridades americanas pretendem usar como cobaia durante a corrida
espacial. Eliza, que é responsável, junto com sua colega Zelda (Octavia
Spencer), pela limpeza da sala onde a criatura fica isolada e aos poucos vai
criando uma relação que passa de amizade a algo mais. Quando Eliza descobre o
destino reservado ao misterioso ser, recorre à ajuda de seu vizinho e
confidente, Giles (Richard Jenkins) e do inesperado apoio do cientista Bob
Hoffsteler (Michael Stuhbarg) para ajudar o homem-anfíbio a fugir, mas não sem
antes ter de enfrentarem toda hipocrisia e maldade personificadas na figura de
Strickland (Michael Shannon) o responsável pela cobaia e que não vai poupar
esforços até que as coisas sejam feitas de seu jeito.
O filme é um conto de fadas, temperado
com critica político-social e pitadas de terror (e um pouco de safadeza). Essa
crítica já fica clara desde a apresentação dos personagens principais, onde o
diretor subverte os estereótipos presentes nas histórias clássicas, em que
normalmente temos os protagonistas enquadrados no que se aceita como padrão, e
apresenta destaque e relevância a figuras para quem antes eram reservados
papeis secundários. Não satisfeito com isso, a trama é ainda ambientada durante
a década de 1960, os anos de luta pelos direitos civis dos afro-americanos e
auge da guerra fria e, cerca a protagonista com uma amiga negra, um confidente
gay e um (spoiler) espião russo como aliado inusitado, de maneira que nos
remete a fuga do que sempre é aceito como padrão e ao questionamento sobre o
quanto o “diferente” é por vezes, errônea e simplesmente, visto como errado e o
mal que isso pode causar.
"Que peixão!" |
Nessa
situação de quebra de paradigma, o que mais se destaca são as figuras do
mocinho e do vilão. Enquanto o “mocinho” é uma criatura anfíbia que lembra o
monstro da lagoa negra do filme de 1954, ou o Abe Sapien do filme “Hell Boy” e
que não consegue ao menos se comunicar com exatidão, mas demonstra empatia e
gratidão; o vilão é um pai de família, com sonhos mundanos de trocar de carro e
casa e, dono de sua própria moral (não muito higiênica), mas desprovido da
percepção do mal que seus atos e palavras podem causar a quem o cerca, fazendo
com que o expectador vá aos poucos deixando de observar as aparências físicas
de ambos e se conecte com suas essências. O mesmo corre com o restante do
elenco, que vão se destacando na medida em que vamos entendendo que, dentro da
época e contexto em que a história se passa todos eles são criaturas tão
estranhas quanto o homem anfíbio, fato que nos faz crer na motivação daquelas
pessoas para arriscarem tudo pela liberdade daquele ser, que de certa forma representa
a fuga para liberdade de cada um dos envolvidos.
O
ponto forte do filme é justamente essa critica que a história faz ao utilizar
personagens que vão de encontro ao tradicional primeiro esquadrão das tramas
consagradas como protagonistas e elenco de apoio, e, utilizando como cenário um
dos momentos mais duros da história moderna para assim fazer uma alusão ao
momento atual de nossa sociedade, sem com isso perder o foco na trama e
apresentar um filme delicado, doce e divertido. No entanto, há uma reutilização
de conceitos por parte do autor, que por mais que se enxergue como sendo a
assinatura do mesmo, criam a atmosfera de que muito do que se apresenta já foi
visto anteriormente em suas produções.
Uma dessas repetições, que já citei acima, é a aparência do homem
anfíbio, que remete muito ao personagem Abe Sapiens dos filmes “Hell Boy”, que
foram dirigidos por Del Toro e que, coincidentemente (ou não) era interpretado
pelo mesmo ator, o multi-maquiado Doug Jones. Outra coisa é o fascínio do
diretor pela solidão, que em quase todos seus filmes, e esse não é diferente,
se concretiza ao apresentar o protagonista como um Órfão, tal como ele fez em
“A espinha do Diabo”, “Orfanato” e até “Hell Boy” e “Blade”. Mas essas
reutilizações de temas ou similaridades com outras produções de Del Toro, não
são um defeito representando no filme e não atrapalham ou diminuem a qualidade
do que o diretor consegue entregar nas duas horas de fantasia que apresenta.
Fiquei
impressionado com “A Forma da água” e como Guillermo Del Toro continua
conseguindo falar tão bem sobre os sentimentos humanos utilizando a fantasia e
a ficção científica, deixando sua assinatura (mesmo com algumas reutilizações) no
roteiro, produção e estilo; mergulhando-nos (sem trocadilho) em uma trama que
consegue subverter os contos de fada e falar muito de nossos dias utilizando o
passado como cenário e, com isso, dando um novo fôlego ao cinema nesse início
de ano e principalmente para mim, que estou cansado do mais-do-mesmo. Então, se
quiser fugir de sua vida rotineira e afundar em uma fantasia repleta de critica
social, romance e uma produção caprichada, não perca tempo e se atire de cabeça
na “Forma da água”.